22.4.12

LITERATURA DA GUINÉ-BISSAU

Fonte:
lusofonia.com.sapo.pt/guine.htm


Índice




VIDA E OBRA
Escritor da Guiné–Bissau, envolveu–se, nos anos 70, no movimento independentista do seu país, abandonando os estudos liceais e partindo para a guerrilha em 1973. Após o 25 de Abril, regressou a Bissau, prosseguindo os seus estudos.
Foi responsável-adjunto pelo sector de educação na região de Bolama e professor de história. Frequentou, em 1979 e 1980, um curso de Planificação Regional no Rio de Janeiro. De regresso à Guiné, trabalhou como quadro no ministério da cultura, sendo ainda deputado na Assembleia Nacional Popular e membro do Comité Central do PAIGC.
Tem colaboração nas publicações Raízes (cabo-verdiana), África (portuguesa), Libertação e O Militante, estas duas ligadas ao PAIGC.
Hélder Proença começou por se dedicar à literatura era ainda adolescente, escrevendo poemas anticolonialistas, de afirmação da identidade nacional, que acompanharam a sua actividade política. Os textos desta fase foram reunidos no volume Não Posso Adiar a Palavra, editado apenas em 1982. Este carácter panfletário foi-se atenuando progressivamente, embora o autor nunca tenha descurado uma vertente de intervenção política e social. Considerado uma das grandes figuras da nova literatura guineense, escrevendo tanto em português como em crioulo, foi o co-organizador e prefaciador da primeira antologia poética do seu país Mantenhas Para Quem Luta! (1977). Alguma da sua produção continua inédita.
http://web.educom.pt/p-ccomum/2/biblioteca/biografias/guine.htm

De entre os poetas revelados nas primeiras antologias referidas, poucos prosseguiram o ofício, com poesia dispersa. Hélder Proença é um deles, publicando, em 1982, Não posso adiar a palavra, revelando-se, então com 26 anos, um poeta «amadurecido» pelo tempo e pela visão desapaixonada do momento. Sem se desvincular da enunciação ideológica (alguns poemas já haviam sido publicados), a sua poesia já evidencia, de maneira sugestiva, o labor consciente que se manifesta nos níveis formalizantes da mensagem literária: a concertação tecida da matéria sonora, das imagens e da rítmica e até da utilização gráfica da página. Nessa performance técnico-formal, o tecido social e ideológico engendra uma linguagem simbólica, transfigurada do real, mas ainda vinculadamente radicada nele. Mas até os temas se diversificam: além da celebração da pátria e dos heróis, o sentimento pátrio harmoniza-se com o amoroso e até o erótico e o sujeito é, então, simultaneamente aquele que pensa e sente, ama e odeia, ri e chora. É a catarse dos lugares comuns e o triunfo do homem pleno que se deixa envolver pelo fascínio da volúpia e se verticaliza na reivindicação de uma pátria de cidadãos individualizados.
O próprio macrotexto convida-nos a essa procura de discursos paralelos. Divide--se em três partes: «As trincheiras também cantam, amor», «Entre mim e o canto, a poesia» e «Vem, Pátria, nesta proposta do amanhecer». E o último poema é também um manifesto: «Juramento». 
(Inocência Mata, “A Literatura da Guiné-Bissau” in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p.362)



 

HÉLDER PROENÇA
   NÃO POSSO ADIAR A PALAVRA
Col. Vozes do Mundo
      Sá da Costa Editora, Lisboa / 1982

 RECENSÃO CRÍTICA
Os especialistas de poesia africana de expressão lusófona têm em alta estima os escritos de Hélder Proença, vendo nele o promotor por excelência da literatura da Guiné-Bissau. Interpretação problemática, visto que, segundo Manuel Ferreira, essa literatura se caracteriza sobretudo pela sua quase-inexistência e pela dispersão extrema dos contos ou provérbios que a constituem.
A publicação desta colectânea dá seguimento a textos publicados em 1977 em Mantenhas para Quem Luta! (A Nova Poesia da Guiné-Bissau) e desenvolve os seus temas primaciais. A palavra-chave é, naturalmente, o termo povo, cujo significado de denotação abrange todas as vítimas da opressão estrangeira, mas cuja carga conotativa é muito mais ampla. Nela se integram todos os valores morais individuais: esperança irrecusável em “um amanhecer diferente” (p. 16); certeza de promover uma pátria do humano, modelo ideal de toda e qualquer comunidade humana: “Nós avançamos no lamaçal quente da história / mas firmemente nos nossos passos.” (p. 17); crença na positividade do ardor revolucionário: “Nós somos / aqueles que dia e noite / fazem com suas mãos / os alicerces da vida” (p. 20); e isso permite “olhar com confiança / o amanhã que hoje construímos” (p. 31), em pugnacidade contra todas as formas da exploração humana: “porque o povo jamais dormiu no silêncio!” (p. 35).
Ante esta poesia, porém, situamo-nos nos antípodas duma visão idealista e moralística do povo, como a que é perfilhada, por exemplo, por Michelet. É evidente que, para o autor, a ideia de povo se identifica, como em natural osmose, com o PAIGC. Um poema é a este dirigido como homenagem e Amílcar Cabral é lembrado como ponto de mira duma poesia cantada, duma poesia-acção, destinada a alimentar o entusiasmo popular e a cobri-lo de glória (p. 86). O Partido é o indispensável catalisador que converte em actos as virtudes inerentes às massas. Sem ele nenhuma progressão seria possível — e daí a ansiedade (p. 68) que toma o militante na expectativa duma decisão importante dos dirigentes.
Em tal situação, o artista não pode fazer mais do que dedicar-se de corpo e alma à causa do povo (ou do Partido). Galvanizar as energias, mobilizá-las na luta contra o invasor, incitar os camponeses-guerrilheiros à firmeza com a esperança num «amanhecer diferente» — esses são os temas dominantes dos versos, que no entanto não se confundem com o discurso da propaganda revolucionária. Não são formuladas palavras de ordem para o dia a dia, não se denuncia ninguém à vindicta popular. E a visão é, de facto, muito mais ampla do que isso. Traz a marca duma metafísica popular que desvenda a “harmonia maravilhosa / da morte e nascimento” (p. 54) e, através dela, a contribuição da degenerescência física para a regeneração das forças naturais. Essa ideia relaciona-se, aliás, com o ideal revolucionário, para o qual a morte individual contribui para preparar a vitória final: “prontos a morrer hoje / para ressuscitar amanhã / no festim do povo.” (p. 31). O combatente, com a consciência da sua pequenez pessoal, ignora o sentimento da morte desde o momento em que pensa em si mesmo como um do da cadeia revolucionaria (ver L’Espoir de Malraux).
Esta poesia, que assim reforça o discurso dos combatentes, desenvolvendo ao máximo o seu aspecto ético e humanitário, não é nova para o leitor ocidental. Éluard, Aragon, também sentiram a urgência de pôr os seus dotes de escritores ao serviço de um empenhamento político e ideológico, quando de situações em que os homens confrontavam os seus pontos de vista mesmo na tortura e nos massacres. Assim se forjou a apologia incondicional dos Partidos Comunistas francês ou soviético por Aragon (La Diane Française, Hourrah I’Oural).
A opção por um campo ideológico, nestes poetas franceses, foi a condição que tornou possível a ressurreição de um género épico que havia sido posto de parte desde Victor Hugo. O mesmo não se pode dizer de Hélder Proença, para quem o alistamento pessoal sob a bandeira do PAIGC motivou versos de evidenciada sensaboria, como estes: “Ter confiança no Partido / é desbravar o mato de injustiça, abusos e humilhações / é aproximar a madrugada que além aponta / é ter em nós a certeza na vitória!” (p. 31). A palavra de ordem política nunca pôde tomar o lugar da inovação poética.
Mas também quando Proença põe de lado o desígnio de propaganda para nos fazer compartilhar o seu sentimento amoroso incorre por vezes numa puerilidade exemplar: “Quando teu olhar / se afoga / na sensibilidade do meu sorriso / e palavras enlutadas de rosas / se congelam / no divórcio das nossas línguas / descubro no Himalaia do teu corpo / o crepúsculo incomunicável do inverno Moscovita.” (p. 42). Estamos aqui muito longe dos achados de linguagem de Aragon quando canta a sua devoção a Elsa ou de Paul Éluard ao escrever sobre a morte de sua mulher Nush: “Mon amour si léger prend le poids d’un supplice”.
Poderá objectar-se que Proença perfilha uma visão universalizante dos acontecimentos e por aí ultrapassa os limites histórico-geográficos da causa que defende: a luta pela libertação travada na Guiné-Bissau toma o valor de exemplo ao realizar-se na ordem e no respeito sacrossanto pela liberdade. Inscreve-se desse modo num passado imemorial de lutas contra as dominações estrangeiras. A “Ode a Abomey” (p. 47), que é sem dúvida um dos melhores momentos do livro, presta homenagem ao rei do Daomé, Behanzin, pela sua “rebelião” e a sua “insubmissão”, com a crença num “maravilhoso paraíso onde impera / a liberdade, o trabalho e a felicidade!” (p. 24). Decerto que o tempo do combate é o da euforia sem nuvens; mas ninguém ignora que, passado esse tempo, a reconstrução do país levanta dolorosos problemas e que a alegria popular dá lugar às desilusões ante aquilo mesmo que era objecto duma sacralização generalizada.
Este texto terá de ser lido, consequentemente, sob a perspectiva da circunstância histórica que lhe determinou os temas e os destinatários. Fora dela, perde muito do seu poder de galvanizar multidões. Mas bastará o seu testemunho para lhe assegurar valor literário autêntico? 
Pierrete e Gérard Chalendar [Tradução de A. Salema] in Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 75, Set. 1983, p. 106-107.

   HÉLDER PROENÇA
   NÃO POSSO ADIAR A PALAVRA

        ANTOLOGIA POÉTICA

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos

negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres
            em toda a terra
            e em todos os homens

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a «Deus Pai todo poderoso criador dos céus e da terra»

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
            as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
            no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!

 

Nas noites de N’djimpol
vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro.

Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando!

Vi braços robustos e livres
sonho campos loiros
espigas dardejando ao sabor do vento
brisas e pássaros cantando
sol e flautas beijando o suor fecundante.

Nas noites de N’djimpol
Vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro...

Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando

Sim,
Vi nas noites de N’djimpol
sonho mamãe terra
sonho compassos rítmicos no capinzal
dilatando a fé do homem-terra
o horizonte e o brilho das nossas mãos.

Oiço o grito das brisas loiras...
na imensidão farta dos campos
sim mamãe terra
firmemente sonho
na certeza gritante
de sermos loiros e fortes
            como espigas e o sol
fortes e loiros…
Mamãe terra
Sonho mas juramos-te!

 
«L ‘univers tient en oeuf que la terra desire.»
BÉHANZIN, 1858-1889.
 
Há 240 anos
vi no horoscópio
[2] da história
Abomey em prontos
vi-te de pé, Abomey
na sucessão vertiginiosa
de nove reinados

Vi também
na mesma altura
a caravela, a cruz
as quinquilharias
e Cristo eras tu!
Tu que pela graça do Espírito Santo
recebias homens em correntes imobilizados
            Aqui foi Ouidah
[3]
Onde mercadorias humanas
redimiam-se sob «negras bandeiras da fome» e sangue.

Capitão Ambrósio
[4]
aqui foi Abomey
há 190 anos
estes homens estendidos em longas proas
também foram
o Harlém
[5] santificado pela bandeira das quinas
Aqui foi Abomey e Ouidah, capitão Ambrósio
e tu bandeira de armilar esfera – a civilização.

O ceptro à Agadja
[6]
a porcelana Zinli
[7] em tam-tam fúnebre
junto a Glélé
[8] e suas donzelas eternas
            ainda repousam
a branca bandeira da hipocrisia
            à paternidade dos Panteras[9]
Tudo que em Cristo e por Cristo deixastes
            testemunham ainda a tua LusoCristo-picalidade
O manto real em púrpura
12 canhões para 24 cabeças, também e aleluia!

Vi órfãos e viúvas eternas
no horoscópio da história
enquanto o pecado se expiava no Harlém
Capitão Ambrósio!

Assim
sustido pela ferocidade da selva
e pelo Tigre totem
evoquei em prantos teu nome Segobolissa
e disse gritando em direcção ao Níger
qu’estas almas donzelas
p’lo alcolusófono voluntariadas
para de pé se cobrirem de terra
junto a ti Glélé na eternidade
            em paz repousem

E
foi assim
que a noventa anos passados
sobre este túmulo
que nosso silêncio hoje ameaça
em lágrimas,
Vi-te Béhanziri
coberto de rebeldia e insubmissão
E sobre
tua irreverência opulenta
fiz ecoar hinos em marfim
gravados
e sobre mármore
selados
Para te reencontrar
na largura indimensional
da nossa civilização.
 
«Pour le Danhomé j’ai sacrifié la vie de milliers de guerriers; je me suis réduit moi-même à l’état de fugitif sans fétiches favorables, sans mulettes protectrices.», BÉHANZIN

[1] Os palácios reais do Abomey são um grupo de estruturas construídas de barro pelos povos Fon entre meados do século XVII e finais do século XIX. A cidade era circundada por uma muralha de lama com uma circunferência estimada em seis milhas, atravessada por seis portões, e protegida por uma vala de 1,5 m de profundidade, preenchida com uma sebe densa de acácia espinhosa, a defesa usual das fortalezas africanas ocidentais. Dentro das paredes, estavam as vilas separadas por campos, por diversos palácios reais, por uma praça de mercado e por um campo grande que continha as choças. Em novembro de 1892, Behanzin, último rei independente do Daomé, sendo derrotado por forças coloniais francesas, ateou fogo a Abomey e fugiu para o norte. Os palácios reais de Abomey são a única lembrança deste reino desaparecido.
[2] Horóscopo: predição da sorte; destino; futuro de uma pessoa ou coisa.
[3] Ouidah, Hweda, Ouidá, Uidá, Ajudá é uma cidade localizada na costa ocidental africana, actual República de Benim – o território onde o Benim se localiza era ocupado no período pré-colonial por pequenas monarquias tribais, das quais a mais poderosa foi a do reinado Fon de Daomé. A partir do século XVII, os portugueses estabelecem entrepostos no litoral, conhecido então como Costa dos Escravos. Os negros capturados são vendidos no Brasil e no Caribe. No século XIX, a França, em campanha para abolir o comércio de escravos, entra em guerra com reinos locais. Em 1892, o reinado Fon é subjugado e o país torna-se protectorado francês, com o nome de Daomé. Em 1904 integra-se à África Ocidental Francesa. O domínio colonial encerra-se em 1960, quando Daomé torna-se independente, tendo Hubert Maga como primeiro presidente. A partir de 1963, o país mergulha na instabilidade política,com seis sucessivos golpes militares.
[4] Certos levantamentos populares, como o de 1934, em São Vicente (Cabo Verde), contra a fome e consequente falta de trabalho marcaram os escritores caboverdianos. Gabriel Mariano viria a imortalizar esta revolta no poema «Capitão Ambrósio», como também Manuel Ferreira em Hora di Bai.
[5] Harlem é um bairro de Manhattan na cidade de Nova Iorque, conhecido por ser um grande centro cultural e comercial dos afro-americanos.
[6] Agadjá, 1708-1732, um dos reis do Daomé.
[7] Peça redonda da cerâmica, utilizada para fornecer o ritmo zinli, música tocada pelos antepassados que vieram de tado, uma aldeia mahi, onde nasceu o Gota que é tocado principalmente nas cerimónias em homenagem aos voduns, funerais e para acalmar os espíritos dos mortos; também serve para afastar as aflições, moléstias e ofensas.
[8] Glelé, 1856-1889, um dos reis do Daomé.
[9] Partido negro revolucionário estadunidense, fundado em 1966 em Oakland - Califórnia, por Huey Newton e Bobby Seale, originalmente chamado Partido Pantera Negra para Auto-defesa. A finalidade original do partido era patrulhar guetos negros para proteger os residentes dos actos de brutalidade da polícia. Os Panteras tornaram-se eventualmente um grupo revolucionário marxista que defendia o armamento de todos os negros, a isenção dos negros no pagamento de impostos e de todas as sanções da chamada "América Branca", a libertação de todos os negros da cadeia, e o pagamento de compensação aos negros por séculos de exploração branca. Sua ala mais radical defendia a luta armada. Em seu pico, nos anos de 1960, o número de membros dos Panteras Negras excedeu 2 mil e a organização coordenou sedes nas principais cidades. Os conflitos entre os Panteras Negras e a polícia nos anos de 60 e nos anos de 70 conduziram a vários tiroteios na Califórnia, em Nova Iorque e em Chicago, um desses resultando na prisão de Huey Newton pelo assassinato de um policial. Na medida que alguns membros do partido eram culpados de actos criminais, o grupo foi sujeitado a uma grande hostilização da polícia que algumas vezes se deu na forma de ataques violentos, despertando investigações no Congresso sobre as actividades da polícia com relação aos Panteras. Nos meados dos anos de 70, tendo perdido muitos de seus membros e diminuído a simpatia de muitos líderes negros estadunidenses, levaram a uma mudança dos métodos do partido, que mudaram da violência para uma concentração na política convencional e em um fornecimento de serviços sociais nas comunidades negras. O partido estava efectivamente desfeito em meados dos anos de 1980.

Neste desdém...
 vida marcha num vaivém
baloiçando
criando origens desconjunturadas
e tu badjuda n’a
desdenhosamente marchando no «infortúnio da vida»

Na certeza dos teus sonhos
de jardins suspensos
dum engate fixe do fim-de-semana
e de altas curtições
ao gosto de sol-praias
dos convívios-boîte e do jazz-band
excitando a confusão dos lábios, das luzes e do sexo:
            A-A-A-Ahh... baby
O sabor drogante do teu destino badjuda n’a!
mas continua...
sepulta e bem sepultadinho
a dignidade em alcatifas confortáveis
(pelo menos sairá mais confortável, badjuda n’a)
Deixa exalar
não negues os bafos MINE COOPER e VOLVO
não, não negues o exalo suave da prostituição clássica:
O vestidinho te ajustará melhor, badjuda n’a!
As calças apertadinhas
chamarão mais clientes
(e as fendas ficarão mais nítidas badjuda n’a)
Terás uma Corte distinta
Que magistral personalidade!
E tuas pestanas azuis, verdes ou cinzentas
tuas unhas de gato lagária — de luta e violácea
e tua cara, aqui verde acolá azul
que pintura catalogar an! extraordinária badjuda n’a!

Sim
falarás um português melhor — da Metropóle —
e o deserto do teu sonho encherá de flores
então poderás passar seguramente
em todas as artérias góticas da ilusão
que todos te admirarão
e com mais descontracção
subirás, subirás, subirás
até entranhares
crua e sangrenta nas vísceras do anonimato
O jazz e a confusão das luzes te esperam.


[1] Badjuda: menina, moça.

Esta é a noite
do perfume
            sorriso
brotando
            E digo-te
            canta flor
            mas fita sério!
Este luar-guitarra
é longo e suave
e jovem e sorridente
solfeja e dedilha
refina ancas
emacia o beijo e a ternura
            E também
            amo
            neste tom guitarra
            do luar, Sundiata
            E digo-te
            canta flor
            mas fita bem!
Neste luar prata
se atiçam sensibilidades
esqueço-me
            e afirmo-me
Como fumos sorridentes
e prateados
em longas andanças
            E digo-te
            canta flor
            mas fita bem!
            Esta é a noite
            do perfume sorriso
            brotando

Os olhos de ver
morrem na doçura prateada do horizonte
Enamoro a cruel dureza das rochas
Caso-me com o cristal mais negro
e triste do debaixo da 1ª terra

            E também
            sonho
            neste tom guitarra do luar, Sundiata

Neste luar prata
perfilo-me entre os lábios
mais usados
Hasteio como estandarte
o sexo de todos os Deuses,
enfim, e da virgem santíssima, também!

E digo-te
canta flor
mas fita sério
Também
agonizo neste tom guitarra do luar, Sundiata
E digo, Amem!
E digo-te — Sundiata:
«abô i fidjo di miséria
ca bu tchora bu sufrimentu»
Porque há sono de dormir
ainda
no solfejo cristalino
            de cada nuance pequeno-burguês
se assim é...
em cada coisa, em tudo ou
            em cada coisa?!
e digo, que assim seja, Sundiata!

Desenhando
este silêncio interno
esta música permanente
este retrato multifacético do luar e da agonia

Digo-te
não posso adiar a palavra, Sundiata
se pequei contra ti
e porque no
            Amem
e Aleluia subescrevendo
Agora?!
E digo-te, Sundiata
canta flor
mas fita bem
Porque
esta é a noite
do perfume
sorriso
brotando.


[1] Sundiata Keita (ou Sundjata Keita, ou ainda Soundiata Keita) era o Imperador do Mali, nascido em 1190 em Niani (Reino Mandinga, atual Guiné) e faleceu em 1255. Filho de Naré Maghann Konaté (também conhecido Maghan Kon Fatta ou Maghan Keita) e Sogolon Djata (a mulher búfalo). O épico de Sundjata é contado pelos griots, através da tradição oral. A lenda conta a história de Sundiata um pouco diferente do que realmente aconteceu, era mágica, magia e várias outras coisas. A história verdadeira foi realmente apenas uma guerra que ele venceu e virou rei.

Atente no poema “Quando te propus”:
- o sujeito poético mostra a urgência de nada adiarmos das nossas vidas. E se nós não nos adiássemos? O que faríamos? O que diríamos?
- tomando como exemplo as propostas do poema, imagine um amanhecer diferente a nível individual e a nível colectivo.
Nos poemas apresentados, releve:
- uma poesia de amor e/ou identidade de um espaço;
- a definição histórica, cultural, afectiva de um espaço territorial;
- a constatação de uma situação adversa e a exortação à fundação de uma força vital, libertadora, cosmogónica; o futuro ao alcance das mãos;
- a opção estrutural e discursiva em harmonia com as ideias veiculadas.
- …
(adaptado de Interacções, Fátima Azóia e Fátima Santos, Lisboa, Texto Ed., 2007)