O escritor enquadra-se na geração da Cultura (II), surgida no final dos anos 50 — para prolongar a acção do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA, 1948) e da Mensagem (1951-52)—, de que se destacaram, entre outros, António Cardoso, Arnaldo Santos e Henrique Abranches. Mas, pela particularidade e projecção da sua obra, Luandino ultrapassa-a, para se fixar, nas últimas décadas, como uma das maiores figuras de escritor deste século, em língua portuguesa.
A parte significativa da sua obra foi escrita nos anos 60, nomeadamente os dois livros mais importantes, Luuanda e Nós, os do Makulusu. O primeiro constituiu uma autêntica revolução literária […]. O segundo, escrito durante uma semana, conforme indicação do autor, é para ele o texto com o qual mais se identifica em termos pessoais, quase autobiográficos, podendo ler-se como um testemunho vivencial e uma análise do colonialismo a partir de uma visão de dentro da sociedade branca.
A sua obra divide-se em duas fases: a primeira, que agrega as estórias escritas até 1962. ou seja. todas as incluídas em Vidas novas, e que ainda se mantêm nos limites do discurso relativamente clássico, não demasiado afastado em relação à norma do português europeu e do modo narrativo conforme com o modelo do conto curto à Maupassant: a segunda fase, com a duração de dez anos, inaugurada pela escrita de Luuanda, tenderá progressivamente para a destruição da pacatez de leitura, disseminando marcas de angolanização da língua portuguesa. subvertendo a norma comunicativa do português-padrão de Lisboa, adoptando gírias, neologizações. tipicismos e outros recursos, também sintácticos, orais e tradicionais africanos, para construir uma língua literária propícia ao imediato reconhecimento da sua diferença. (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p.121)
Tal como Guimarães Rosa, começou a usar a designação de estória para as suas narrativas, mais longas que o conto e menos desenvolvidas que a novela ou o romance. […]
A estória é, portanto, diferente da história: misto de mussosso (plural: missosso), fábula ou narrativa moral africana, tradicional, e pequena epopeia popular à moda do grande mestre brasileiro de Minas. Esse texto luandino caracteriza-se, na sua génese, por surgir num espaço de criação de uma linguagem nova, que parte da apropriação da língua já codificada e estabilizada socialmente (isto é, normativizada pelo uso erudito do colonizador), para desconstruí-la, por vezes ao nível minucioso da fonologia, num trabalho de Sísifo contra a montanha intransponível. A língua literária luandina surge assim na intersecção da língua natural portuguesa com a língua natural quimbunda, fornecendo aquela sobretudo o espaço lexical e a estrutura básica, interferindo esta nalguns pontos da sintaxe, introduzindo-se vocábulos crioulizados, aquimbundados, do quimbundo ou mesmo neologismos, além de certas nuances (circunlóquios, tautologias, etc.) prolongarem a oralidade gramatical e expressiva do português. […]
A linguagem de Luandino sofre a influência, como se disse, das línguas bantas, nomeadamente do quimbundo, que são línguas prefixais, aglutinantes e tonais, que dão realce aos aspectos (quer dizer, ao ponto de vista de quem enuncia), com a ausência de alguns tempos e modos, o que tem como consequência haver trocas, por analogia, de alguns deles. A troca de pronomes é também corrente, tal como no Brasil: «via-lhe avançar pela areia». A sintaxe normativa da língua portuguesa de Portugal, sendo modal e temporal, ao sofrer as interferências de uma outra norma de falar, torna-se, por vezes, cómica ou simplesmente imprevista. A adopção de modos gramaticais do quimbundo no uso da língua portuguesa está de acordo com a construção de um estilo que apresenta similitudes muito marcadas com a oralidade africana. Assim, o discurso indirecto livre coaduna-se com a coloquialidade africana e o modo de narrar solto, circunloquial, simulando a espontaneidade popular. Um muito curto exemplo, retirado da «Estória do ladrão e do papagaio»: «Porque polícia é assim: chegaram na casa da madrinha dele, nem que pediram licença nem nada, entraram e perguntaram um rapaz mulato, coxo, Garrido Fernandes, e quando ele adiantou sair no quarto, a cara cheia de sono, os olhos azuis a piscar com medo da luz da tarde, falaram logo sabiam ele tinha ido com Dosreis, um verdiano, assaltar o quintal de Ramalho da Silva e roubado um saco de patos, o Lomelino é que tinha falado tudo, não adiantava negar, melhor veste a camisa e vamos embora» (trecho logo a seguir ao penúltino asterisco).
Alguns dos processos mais costumeiros da criatividade de Luandino são:
Cruzamento — aglutinação;
— fusão (as mot valises)
Adjectivação — do substantivo
— do particípio passado
Concordância — indicativo no lugar do conjuntivo
Construção invertida — «nos todos sentidos»
Elipse (elisão) — do artigo
— da preposição
— da conjunção que: «parece é uma criança»; «eu só juro não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda» (modismos de outro género: «adiantar apanhar», «perguntar saber», «dar encontro». «dar berrida em»)
— do verbo haver
Locuções adverbiais ampliadas — «com devagar», «com depressa», «como assim»
Passiva — emprego de um pronome (lhe, me, te)
— do verbo na 3ª pessoa do plural
— do complemento de agente introduzido pela preposição em
ex: «o João lhe bateram na mãe dele» = O João apanhou da mãe
Preposição — na linguagem popular, ignoram-se os seus usos ou trocam-se ou acrescentam-se
Substantivação — de advérbio
— de adjectivo
— de pronome
E ainda: — o verbo ter usado como predicado de existência, em vez de ser
— supressão do conjuntivo
— preposição em como pronome de complemento indirecto: «deu razão em vavó»
— indicações circunstanciais de lugar donde não são morfologicamente diversas das de lugar para onde: «saiu embora na loja do Kabulu».
Repare-se como, no trecho transcrito mais acima, as indicações circunstanciais de lugar (chegar a; sair de) são exactamente iguais, ainda que os movimentos sejam contrários («chegaram na casa» e «sair no quarto»); o pronome com função de relativo («nem que pediram licença») está gramaticalmente a mais quanto à norma portuguesa, mas desempenha aqui o papel de muleta sonora, rítmica, de angolanização: o modismo «adiantou sair» transmite uma sensação mais forte de movimento: a elisão do integrante («sabiam ele tinha ido») implica a separação nítida dos dois actos (saber/ir); a passagem do discurso indirecto livre para o directo, sem sinalização do facto («não adiantava negar, melhor veste a camisa e vamos embora»), produz uma aceleração discursiva e diegética, logo uma presentificação mais eficaz e saborosa, não analítica nem sintética. (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp.121-123)
Ao justificar o “desvio da norma” nas suas estórias, o próprio Luandino afirma (in “Um escritor confessa-se...”. Entrevista de Luandino Vieira publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Lisboa, em 9/5/1989):
“[…] penso que o primeiro elemento da cultura angolana que interferiu com a escrita, segundo a norma portuguesa, foi a introdução da oralidade luandense no meio do discurso da norma portuguesa... mas depois, quando entramos na luta política pela independência do país, que foi feita em nome das camadas que não tinham voz - e se tivessem não podiam falar, e se falassem não falariam muito tempo... -, foi aí que os escritores angolanos resolveram dar voz àqueles que não tinham voz e, portanto, escrever para que se soubesse o que era o nosso país, se soubesse qual era a situação do país e, desse modo, interferirem de maneira a modificarem essa situação...”
Sobre a elaboração de Luuanda, o escritor é ainda mais contundente ao relacionar elaboração discursiva e resistência política:
“E como estávamos numa fase de alta contestação política - e um dos elementos dessa contestação política do colonialismo era afirmar a nossa diferença cultural, mesmo na língua, um bichinho qualquer soprou-me a dizer-me: Por que é que tu não escreves em língua portuguesa de tal maneira que nenhum português perceba!”
“Foi desta maneira que escrevi essas três estórias do Luuanda, de tal maneira que se um português de Portugal lesse, percebesse todas - ou quase todas – as palavras e dissesse que era português e, depois, dissesse ao mesmo tempo: Não percebo nada disto! Foi alguma coisa de deliberado, de provocatório […]”
“E então aquilo foi para mim uma revelação. Eu já sentia que era necessário aproveitar literariamente o instrumento falado dos personagens, que eram aqueles que eu conhecia, que me interessavam, que reflectiam – no meu ponto de vista – os verdadeiros personagens a pôr na literatura angolana. Eu só não tinha ainda encontrado era o caminho. [...] Eu só não tinha percebido ainda, e foi isso que João Guimarães Rosa me ensinou, é que um escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não seja a que os seus personagens utilizam: um homólogo desses personagens, dessa linguagem deles.” (Vima Lia Martin, “Luandino Vieira: Engajamento e Utopia” in http://www.revistazunai.com.br/ensaios/vima_lia_martin_luandino_vieira.htm)
As três estórias de Luuanda, cujos motivos centrais são a fome, a escassez de meios, ostentam um exórdio destinado a criar um primeiro enquadramento contextual para a acção que se há-de seguir. Nele subjaz a topografia de Luanda e aí se insinua uma atmosfera, que, no caso da primeira e terceira estórias. «Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos» e «Estória da galinha e do ovo», prenuncia forte tempestade, como que a moldar o estado psicológico das personagens através dos impressivos elementos meteorológicos. Ambas terminam com a incerteza do narrador quanto à beleza do que foi contado, deixando o julgamento para o leitor. As duas últimas histórias começam por uma tensão (começam mal) e acabam numa distensão (em happy end). Ambas mostram, nos lugares finais estratégicos, que ao narrador interessa que a verdade ficcional seja convincente, mesmo que ele tenha a certeza de que os casos que acabou de contar, como na «Estória do ladrão e do papagaio», possam não acontecer exactamente assim na vida real, embora muito próximos disso. Luandino quer mostrar-nos aristotelicamente que, na ficção, mais vale uma invenção verosímil do que um facto real inverosímil, a significar que, através da sua inventividade, devemos ler o testemunho histórico e o apelo à consciência. Certos exórdios e certas perorações, na pena de Luandino, existem exactamente para induzirem o leitor numa leitura que lhe faça lembrar a oralidade das histórias contadas como verídicas em torno de uma fogueira. (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p.124)
A elaboração literária de Luuanda deixa entrever uma perspectiva utópica da realidade. Concebida num momento histórico revolucionário, a obra sinaliza a consolidação paulatina do processo de resistência popular que se opõe ao poder colonial, sugerindo caminhos para a transformação efectiva da sociedade angolana. As suas três estórias - “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, “Estória do ladrão e do papagaio” e “Estória da galinha e do ovo” - atestam que o amadurecimento dos sujeitos, que devem assumir o seu papel transgressor, é condição fundamental para a conquista da independência e para a construção de uma nova Angola.
A utopia revolucionária que perpassa e sustenta Luuanda pode ser percebida em vários aspectos da elaboração das estórias, todas organizadas por um narrador omnisciente: na aprendizagem empreendida pelos protagonistas, na progressão temporal sugerida pela sucessão das narrativas e na ampliação paulatina da voz do “griot” a ritualizar o texto escrito.
A acção narrativa do primeiro conto, o único em que a voz do “griot” não se faz presente e que certamente por isso não é nomeado como “estória” pelo narrador, centra-se nas dificuldades enfrentadas por uma avó e seu neto, que moram juntos numa mesma cubata, de sobreviverem no meio das agruras típicas da exclusão social, numa sociedade extremamente preconceituosa e segregadora. Perplexos e sem consciência política, Zeca Santos e sua avó deixam-se envolver pelos sentimentos de fracasso e impotência. A velha, ligada ao passado, e o moço, desiludido com o presente, não sabem como agir para construir um futuro livre da violência e da opressão.
Leiamos os dois últimos parágrafos do texto:
Por cima dos zincos baixos do musseque, derrotando a luz dos projectores nas suas torres de ferro, uma lua grande e azul estava subir no céu. Os monandeagues brincavam ainda nas areias molhadas e os mais-velhos, nas portas, gozavam o fresco, descansavam um pouco dos trabalhos desse dia. Nos capins os ralos e os grilos faziam acompanhamento nas rã das cacimbas e todo o ar estava tremer com essa música. Num pau perto, um matias ainda cantou, algumas vezes, a cantiga dele de pão-de-cinco-tostões.
Com um peso grande a agarrar-lhe no coração, uma tristeza que enchia todo o corpo e esses barulhos divida lá fora faziam mais grande, Zeca voltou dentro dobrou as calças muito bem, para aguentar os vincos. Depois, nada mais que ele podia fazer já, encostou a cabeça no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e desatou a chorar um choro de grandes soluços parecia era monandengue, a chorar lágrimas compridas e quentes que começaram correr nos riscos teimosos as fomes já tinham posto na cara dele, de criança ainda.
Observe-se que a descrição da paisagem natural e humana do musseque presentifica-se de modo contundente. A politização do espaço mestiço e periférico do musseque, que acolhe indistintamente crianças e velhos, é enfatizada e a música orquestrada pelos pequenos animais nativos expressa a vitalidade da terra angolana.
Mas, no momento final da narrativa, “os barulhos da vida lá fora” só fazem aumentar a tristeza e a impotência do protagonista, que “nada mais podia fazer” contra a miséria a que estava submetido junto com a avó. Daí o choro inconsolável, sinal de que Zeca não era capaz de vislumbrar saída para sua situação marginal. A afirmação dupla de sua infantilidade - em quimbundo e em português: “parecia era monandengue” e “cara dele, de criança ainda” – atesta menos a idade cronológica do rapaz e mais a sua incompreensão dos mecanismos da opressão colonial. Sem mais nada a dizer, o narrador suspende a narrativa bem no meio desse desamparo, deixando as personagens a sós com sua dor e deixando a nós, leitores, perplexos com a sua solidão.
A estória central do livro, “Estória do ladrão e do papagaio”, opera uma espécie de passagem entre a primeira narrativa – em que os protagonistas ainda não despertaram para a necessidade do engajamento na luta contra o colonizador – e a última – em que as personagens vão experienciar o alcance político da prática social solidária. De um modo bem genérico, é possível dizer que o texto fala sobre o encontro de três africanos na prisão - Xico Futa, Lomelino dos Reis e Garrido Fernandes - e sobre o florescimento da solidarieidade entre eles. Vale afirmar que o papel exercido por Xico Futa é central nessa interacção: ele é porta-voz de ensinamentos preciosos para as outras personagens e também para os leitores da estória.
Nesse sentido, a “parábola do cajueiro”, enunciada por Futa, é fundamental para a constituição de um saber revolucionário. Nessa narrativa de carácter didáctico, a personagem adverte que é preciso conhecermos a raiz ou o princípio daquilo que mobiliza as pessoas e as suas acções. Vejamos:
[…] Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas. (pp. 71-72)
Ao insistir no facto de que devemos reflectir sobre o cajueiro - imagem das estórias entrelaçadas que conformam e justificam a realidade - e perseguir o fio da vida - fio das histórias pessoais e colectivas – Futa aponta para a necessidade de constituirmos a nossa identidade como sujeitos históricos, afirmando valores fundamentais para a mobilização popular contra o poder instituído.
Já no final da estória, a confraternização entre os capianguistas presos afirma a solidariedade tão necessária para o enfrentamento da luta e é aí que a voz do narrador/“griot” vai se manifestar pela primeira vez. A sua fala, antes de mais nada, pede um posicionamento dos leitores, propondo um julgamento estético - e ético - da própria estória: Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem (p. 120). Desse modo, “os que sabem ler” ocupam o lugar da audiência dos antigos “griots” e são convocados a aderir ou não à narrativa e aos seus ensinamentos.
Por fim, a última frase do narrador/”griot”, que encerra definitivamente o texto, é: “E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado” (p.121). Se pensarmos no carácter didáctico de muitas das estórias tradicionais, que cumprem a função de transmitir valores éticos, o valor atribuído à verdade na “Estória do ladrão e do papagaio” estaria contido justamente na sugestão de procedimentos importantes para o estabelecimento da harmonia nas relações pessoais e sociais. Ao afirmar que diz a verdade, “mesmo que esses casos nunca tenham se passado”, o narrador/“griot” articula as noções de real e verosímil, fazendo com que os leitores/ouvintes tornem-se testemunhas vivas e activas da possibilidade de construção de uma nova realidade histórica afinada com as aspirações revolucionárias.
A terceira estória, “Estória da galinha e do ovo”, que já começa com a voz do “griot” anunciando-a como “caso”, tem como motor a disputa entre duas vizinhas – nga Bina e nga Zefa – pela posse de um ovo. Posto pela galinha Cabíri, que pertencia à nga Zefa, no quintal de nga Bina, que está grávida e tem o marido preso, o ovo é reivindicado por ambas, que alegam seu direito sobre ele. A solução do conflito se dá com a interferência de duas crianças – Beto e Xico – que, imitando o cantar de um galo, fazem com que Cabíri fuja das mãos de policiais que haviam sido chamados para intervir no caso e que pretendiam levar vantagem na situação. Depois disso, nga Zefa resolve abrir mão do ovo e oferecê-lo a nga Bina. Na cena final da estória, podemos observar toda a satisfação da jovem mãe:
De ovo na mão, Bina sorria. O vento veio devagar e, cheio de cuidados e amizade, soprou-lhe o vestido gasto contra o corpo novo. Mergulhando no mar, o sol punha pequenas escamas vermelhas lá em baixo nas ondas mansas da Baía. Diante de toda a gente e nos olhos admirados e monandengues de miúdo Xico, a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande... (p.152)
O vagar do vento, a amenidade do sol e a mansidão do mar demonstram a solidariedade da natureza com a protagonista. A força de sua imagem carregando dois ovos - um nas mãos e outro na barriga -, símbolos de vidas novas que se anunciavam, atesta o acerto na solução de um impasse que parecia insolúvel. A justiça é alcançada graças à intervenção das crianças que conseguem fazer com que o ovo alimente aquela que está gestando um novo angolano, metáfora de um futuro mais desejável para Angola. E as reticências que encerram o parágrafo traduzem justamente esse porvir que precisa ser conquistado.
Para arrematar a narrativa, o narrador/“griot” mais uma vez actualiza a forma oral cristalizada das estórias tradicionais, pedindo o julgamento do relato pelos leitores e atestando a sua verdade:
Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro que não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda.(p.152)
Como já vimos, a avaliação estética exigida dos leitores é também uma avaliação ética. Julgar a estória “bonita” significa concordar com os valores que ela veicula e, em última instância, interiorizá-los e colocá-los em prática. Já o contrário significa a não adesão à ideologia que sustenta a narrativa, a negação daquilo que ela propõe - e que já havia sido anunciado na segunda estória: a ressignificação da tradição, a compreensão histórica dos factos e a solidariedade entre os angolanos como forma de fortalecimento na luta contra os representantes do colonialismo.
Mais uma vez, a “verdade” da estória afirma exactamente aquilo que é necessário para a conquista da liberdade e da justiça na “nossa terra de Luanda”. Trata-se, assim, não da afirmação de realidades sedimentadas, mas da possibilidade de construção de uma nova realidade histórica.
A última narrativa de Luuanda valoriza o carácter revolucionário da acção dos monandengues que, valendo-se de conhecimentos tradicionais, salvam a galinha de cair em mãos inimigas e ensinam as mulheres a agir de maneira mais consciente e coerente com os objectivos da luta contra a opressão colonialista. Temos, então, a utilização da sabedoria dos mais-velhos em função de uma causa bastante objectiva, representativa da luta que deve ser travada para a conquista da liberdade. As gerações mais novas, representadas por Beto e Xico, põem em prática o “exercício da compreensão” explicitado por Xico Futa na estória central do livro.
A progressão temporal sugerida pela ordenação das três narrativas de Luuanda diz muito do sentido geral do livro. Nele, passado, presente e futuro se dispõem cronologicamente, perfazendo uma trajectória que anuncia novos tempos. De Vavó Xíxi à criança gestada por Bina, o fio da vida trançado pelo escritor é percorrido também pelos leitores. Desse modo, um percurso que diz respeito à construção de um saber ou de uma ética revolucionária pode ser depreendido da leitura encadeada das três narrativas do livro. Vale lembrar que a última estória se encerra com o pôr do sol. Aliás, o poente - referido por três vezes durante a narrativa - é bastante significativo em sua elaboração. Para além dos sentidos evocados por seu tom avermelhado - a paixão revolucionária, o sangue derramado na luta pela liberdade e até a cor característica das bandeiras dos partidos comunistas -, é possível pensar que o cair do dia metaforiza o final de um ciclo, de um tempo de opressão que deve se encerrar. Desse modo, a estória sinaliza que, depois da morte do tempo colonial, um novo dia - vidas novas, novos tempos – surgirá. […]
Parece-nos claro que o imaginário social configurado em Luuanda vai ao encontro da formulação de uma “revolução ética”, capaz de concretizar o projecto utópico de um país livre e justo. Nesse sentido, a proposta do escritor angolano aposta na transformação da realidade vivida pelas personagens a partir de sua conscientização e de sua atitude revolucionária.
Em termos mais formais, o engajamento da linguagem literária recriada em Luuanda dá-se através da mistura entre o português e o quimbundo e também através da inscrição universalizante da palavra oral, recuperada ritualisticamente para ampliar o alcance dos ensinamentos contidos em cada narrativa. Dessa maneira, o diálogo estabelecido entre os modos da cultura oral e os modos da cultura letrada realiza a superação, em termos do discurso literário, da dicotomia existente entre tradição e modernidade. Em termos sociais, tal síntese cultural pode ser pensada como a superação da realidade de opressão típica do colonialismo. Afinal, ao ressignificar os valores e as práticas culturais tradicionalmente angolanas e afirmar um saber fundamentalmente ético, a obra articula passado e presente em função de uma experiência futura mais desejável.
Aparentando-se com os casos tradicionais, as duas últimas estórias do livro de Luandino Vieira transmitem valores essenciais para o bem-estar colectivo e exigem um posicionamento crítico de quem se dispõe a conhecê-las
Embora profundamente arraigada na história angolana pré-independência, a escrita literária de Luuanda permanece viva e actual como reflexão sobre contradições e impasses que, se estão presentes no plano social, estão também profundamente cravados nas subjectividades dos protagonistas das narrativas e, em alguma medida, de cada leitor.
Para além de sugerir a afirmação de uma ética revolucionária fundamental para a superação dos impasses inerentes à condição marginal na Luanda do início dos anos 60, o “optimismo militante” de Luandino Vieira aposta nas possibilidades e nas potências imanentes ao homem, sujeito literariamente concebido como livre e capaz de concretizar utopias sociais. (Vima Lia Martin, “Luandino Vieira: Engajamento e Utopia”)
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