24.11.11

JORGE BARBOSA - Cabo Verde


                  


JORGE BARBOSA

Índice

 Jorge Vera Cruz Barbosa nasceu na ilha de Santiago de Cabo Verde em 22 de Maio de 1902. Fez os seus estudos primários na cidade da Praia e veio depois para Lisboa, onde estudou até ao 3° ano. Regressa em seguida para Cabo Verde, continuando os seus estudos até ao 5° ano.
Aos dezoito anos começa a trabalhar na Alfândega de São Vicente. Percorre quase todas as ilhas em serviço, para onde é transferido por várias vezes. Aposentou-se na ilha do Sal, em 1967, com sessenta e cinco anos, com a categoria de director de alfândega.
Em Setembro de 1970, já bastante adoentado do coração, vem para Portugal tratar-se, falecendo três meses depois, em Janeiro de 1971.
Vida sem grandes sobressaltos e limitada à fronteira marítima que inspirou tantos dos seus poemas. No entanto, profunda e imensa em sonhos e em viagens imaginadas que jamais realizou. 
Jorge Barbosa publicou em vida três livros: Arquipélago (1ª edição em Dezembro de 1935, sob a égide da Editorial Claridade), Ambiente (1ª edição em 1941, Praia, Minerva de Cabo Verde) e Caderno de um Ilhéu (1ª edição em 1956, Lisboa, Agência Geral do Ultramar). Postumamente, em 2002, a sua Obra Poética foi reunida pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, onde se acrescentou três livros inéditos, ordenados pelo poeta: I – Expectativa; II – Romanceiro dos Pescadores; III – Outros Poemas. Nestes três livros encontram-se alguns poemas que foram apresentados na Poesia Inédita e Dispersa de Jorge Barbosa, publicada, em 1993, pelas Edições ALAC. Os que restam e que ficaram de fora dos três livros inéditos foram incluídos igualmente numa parte IV com o título Poemas dispersos. Incluem-se ainda, na parte V, cinco poemas em crioulo. 
Deu a sua colaboração literária a revistas e jornais da época, como Presença, Claridade (quer nos três primeiros números, quer nos seis restantes da 2ª fase), Cadernos de Poesia, Diabo, Atlântico, Mundo Português, Aventura, Movimento, Mensagem (CEI), Notícias de Cabo Verde. Mais regularmente, a sua colaboração foi para o Boletim de Cabo Verde, durante vários anos, não só com poemas, como também com as crónicas de São Vicente e artigos vários.

Na sua obra poética, existe um núcleo fundador de uma estética poética, derivado do relacionamento do sujeito com o espaço – a ilha. Dessa relação resulta aquilo que podemos denominar a insularidade, isto é, o sentimento de solidão, de nostalgia que o ilhéu experimenta face ao isolamento e aos limites da fronteira líquida que o separam do resto do mundo, criando-lhe um estado de ansiedade que o leva a sonhar com outros horizontes para lá do mar. Insularidade que é, antes de mais nada, cabo-verdiana e que, desse modo, se particulariza. O factor geográfico do Arquipélago constituído por dez ilhas relativamente pequenas, juntamente com os condicionalismos climáticos, marca a sentimentalidade e a maneira de estar do homem.
Se, por um lado, a pequenez do espaço em confronto com o mar agiganta os sonhos e o desejo da partida, por outro, as secas, destruindo o ganha-pão do homem, levam-no a realizar a aventura da emigração, isto é, a aventura da sobrevivência. A insularidade em Jorge Barbosa contém estas duas vertentes, expressas na dicotomia «querer partir e ter de ficar» e «ter de partir e querer ficar», estabelecendo o enlace do regionalismo com o universalismo, duas qualidades, afinal, inerentes ao conceito de insulação ou insularidade. Estas estruturas tendem a articular-se na poesia de Jorge Barbosa, plasmadas num profundo conhecimento da terra e do homem, constituindo a sua aventura interior, impressa não na língua crioula, mas na língua portuguesa, cujo discurso é impregnado dos ingredientes do homem mestiçado. A crioulidade é assim o factor primordial da sua identidade.
A sua produção literária abrange um espaço de 41 anos, de 1928 a 1969 (sendo a poesia dispersa e inédita paralela aos livros publicados, preenchendo os hiatos das suas publicações e prolongando-se quase até à hora da morte).
Podemos agrupá-la em três períodos:
O primeiro, pré-claridoso, de 1928 a 1935 (poesia inédita em livro até Arquipélago); o segundo, o período claridoso, de 1935 aos fins dos anos 1950 (incluindo a publicação de Ambiente e Caderno de um ilhéu); o terceiro, de 1959 a 1969, pós-claridoso ou da mudança (poesia inédita).
O primeiro período define-se como preparação e fermentação de um novo ideário ético-estético.
Intelectualizada pela poesia a consciência da insularidade, o poeta encontra-se apto a analisar as situações sociais motivadas por circunstancialismos político-geográficos. Em 1932, sai o poema «O Baile», iniciático da sua viagem interior rumo às origens (verifica-se um envolvimento nas suas raízes como propósito definido), numa cena do quotidiano, em que a negra que amamenta a criança «de ébano polido» é sublimada pela analogia com a Virgem-Mãe, olhando o Cristo-Menino, reiterando o princípio da gestação rácica. No plano da representação, os elementos típicos e ambientais (a morna, os pares dançando, o quarto de terra batida, o suor e a aguardente) aludem ao submundo do porto de São Vicente, tema que é retomado noutros poemas, posteriormente, em «Roteiro da Rua Lisboa» (Claridade nº 9, em 1960) e «Meninas Portuárias» (inédito, 1966), e que lembram outro grande Mestre das letras cabo-verdianas, o novelista António Aurélio Gonçalves. Verificamos que há uma intenção clara de definir um espaço vital, «a terra mater», já a partir de 1930, em poemas possivelmente escritos antes. Na verdade, tanto o seu livro Arquipélago, como parte dos poemas publicados no livro Ambiente, já estavam escritos em 1933, segundo cartas que o poeta escreve a Manuel Lopes, revelando a precoce modernidade cabo-verdiana. A consciência, pois, do presente vivido, anunciado nos seus pontos nevrálgicos: as secas, o drama centenário da fome, o desprezo que o poder central metropolitano manifestava em relação aos problemas trágicos das ilhas, a fuga para outros climas. Aliás, em 1931, Jorge Barbosa publicava, em O Notícias de Cabo Verde, n° 6, um artigo em homenagem a Eugénio Tavares («Eugénio – tópicos de uma monografia»), em que usa, pela primeira vez, a expressão «caboverdianismo» no conceito que modernamente atribuímos a «cabo-verdianidade».
Caboverdianizar a literatura era, afinal, o que pretendiam, à semelhança do que acontecia no Brasil, desde 1922, após a Semana de Arte Moderna. A esse respeito, Manuel Lopes afirmou:
A poesia modernista brasileira realizara a tarefa de «nacionalizar definitivamente a literatura» na expressão de José Osório de Oliveira e essa «invenção» da poesia brasileira foi o Ypiranga literário, o acordar para a descoberta do homem e da paisagem do Brasil. […] A mensagem presencista era para nós epidérmica, não penetrava a nossa humanidade. Não representava uma solução ou um caminho, uma resposta às nossas interrogações. Foi quando o modernismo brasileiro, em pleno amadurecimento, e o neo-realismo nascente chegaram a São Vicente. Tivemos a impressão de que a voz que vinha do Sul pertencia a um irmão mais rico e corpulento, mas irmão. (Manuel Lopes, «Reflexões sobre a Literatura Cabo-verdiana». in Colóquios Cabo-Verdianos, nº 22, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1959, p. 15).
De facto, o modernismo brasileiro, desenvolvido nas décadas de 1930 e 1940 por poetas como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, preconiza um temário poético exclusivamente brasileiro, popular e tradicional, reagindo contra os parnasianos. O romance regional nordestino de Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, o romance urbano de Erico Veríssimo, a obra de Gilberto Freire e os estudos de Artur Ramos sobre o negro africano no Brasil, são particularmente sensíveis para os escritores cabo-verdianos, por tudo o que aproxima o Brasil de Cabo Verde: o processo aculturativo, o ethos africano, as secas nordestinas, com o corolário de desgraças conhecidas pelo ilhéu cabo-verdiano.
Dentro das influências literárias, deverá falar-se também do escritor António Pedro, um dos fundadores do surrealismo português, que, em 1929, estivera na sua terra natal, convivendo com Jorge Barbosa, Jaime de Figueiredo e outros. Subtilmente, o poeta enuncia, em «Poemas Autobiográficos» (1953) e em «Panfletário» (1966), o desejado pelo não realizado, o dito pelo não dito. Traduz, por um processo de dissimulação, aquilo que é e, sobretudo, aquilo que deveria ser nas aspirações mais íntimas. Em «Panfletário», coloca em termos políticos e sociais o desajuste entre o ser e o estar, isto é, as várias razões castradoras da realização da «Magnífica aventura de ser panfletário».
É esta evolução para uma acentuada consciencialização política e social da função da literatura e da arte que irá nortear o terceiro período da sua obra poética – o pós-claridoso ou da mudança. Evolução corajosamente já patenteada nos livros publicados, em que, antes de mais nada, revela a idiossincrasia da personalidade islenha. E, numa consciência social muito experimentada, toca toda a temática do Homem das ilhas: as secas, a fome, a morte prematura, a prostituição, o abandono e a Viagem (motivo fundamental). Desejada ou necessária, a Viagem é um percurso entre os espaços, transição no plano mental, afectivo ou intelectual, retorno às origens e à mística da terra, entre o real e o onírico.
Daí que toda a obra publicada (em livro ou dispersa) prepare esse 3° período, o pós-claridoso ou da mudança, que se define pelo discurso da agressividade e da intervenção, nunca perdendo, porém, o lirismo de carácter afectivo, repassado de dor, em tom magoado. (Elsa Rodrigues dos Santos, “O movimento da Claridade; Jorge Barbosa e Manuel Lopes” in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp.192-195)


  
O BAILE
No baile
A morna
Entorna
Dolências...

O rabequeiro
Compassa
A música,
Batendo a planta descalça
No chão.
E os pares
Giram
Apertados
Uns contra os outros,
Levados
Na morna...

O rectângulo do quarto
É terra
Batida
E dura,
Como não vem
Nos manuais da Arquitectura...

A um canto,
A preta sadia
Amamenta
Uma criança luzidia,
Toda nua e sorridente.
E olhando-a aumenta
O seu sorriso contente,
Num ar
Feliz,
Que faz lembrar
Virgem Maria
Quando
Ficava
Olhando
Cristo-Menino...



















Que o filho que traz ao peito
É para ela
Um pequenino
Jesus,
Todo esculpido
Em ébano
Polido...

No ambiente
O cheiro
Forte

A suor,
Mais o aroma
Da aguardente...

No baile
A morna
Entorna
Dolências... 
(in revista Descobrimento, vol. II, Lisboa, 1932, pp. 56-57)

Aproveitando o espírito de renovação e abertura, Jorge Barbosa publica n’O Diabo, em 1940, o poema «Posse», onde manifesta a sua perfeita consciência política sobre o significado do acto colonizador e, posteriormente, das estruturas colonialistas.
Assim, o poema transformado em parábola, recuando a um tempo inaugural, narra a história da «pequena ilha solitária e perdida nos mares do Sul» onde «o povo seguia a sua própria lei»:

  
POSSE 
Nos compêndios escolares não se falava da pequena ilha
solitária e perdida nos mares do Sul.
Não passavam por lá os barcos dos brancos
e o povo seguia a sua própria lei
que no entanto não estava escrita em livro algum.
Homens e mulheres viviam nus e amavam-se sem complicações
e comiam peixes que pescavam em canoas feitas com troncos de árvores
e carne de animais caçados com setas certeiras.

Atletas e guerreiros dançavam ao som de búzios e tambores
e as bailadeiras ondeavam contorcidos ritmos lentos
na toada triste de instrumentos de uma só corda.
E tinham seus deuses, seus santos, seus sacerdotes, seus feiticeiros,
e moravam em cubatas cobertas com palmas das palmeiras.

Mas do outro lado da terra
um dia
senhores de cara grave assentaram-se à volta de uma mesa com mapas em frente,
            falando de guerras,
            de bases para aviões,
            de pontos estratégicos...

Então veio à baila a ilha solitária perdida nos mares do Sul...
Semanas depois um barco de ferro chegou e fundeou
nas águas tranquilas da baía...
E um escaler veio para terra com homens loiros vestidos de branco,
trazendo, entre outras coisas,
            uma bandeira para a primeira afirmação imperial,
            um chicote para o primeiro castigo,
            um barril de pólvora para o primeiro massacre
            e um outro de álcool para o primeiro comércio! 
Praia, Cabo Verde
(in jornal O Diabo, Lisboa, 23 de Março de 1940, p. 3)

Estão então reunidas todas as condições para a prática do colonizador: o poder cuja bandeira é o símbolo do domínio; o chicote como representação castradora do povo, O barril de pólvora, sinónimo de guerra imposta pela ingerência e povoamento forçados, «e um outro de álcool para o primeiro comércio».
Nesta linha ideológica situar-se-ão outros poemas, principalmente os que se conservaram inéditos ou os que foram publicados em certos jornais, escapando à peneira da censura. Ele esperaria em melhores dias, e não há dúvida de que acreditava que, num futuro, isso seria possível. Por isso, Jorge Barbosa teve uma actividade de escrita metódica praticamente até morrer.
Nos livros inéditos que nos chegaram muito recentemente às mãos, ordenados por ele próprio, e cujos poemas se reportam sobretudo ao período entre os anos 1950 e 1960, a linguagem ganha um tom agressivo, através de uma ironia dolorosa e magoada.

Jorge Barbosa traduz no livro inédito I - Expectativa a dramaticidade da espera que se vai desenvolvendo num «crescendo», à medida que o tempo passa e o vazio é cada vez maior.
A repetição do refrão do primeiro poema: «Éramos nós / somos nós / dez ilhas» funciona como um grito ou uma chamada de atenção para esse pequeno arquipélago de minúsculas ilhas, em busca de paz e de pão.
O primeiro poema, «Preâmbulo», é, como diz o título, uma introdução sobre o contexto geográfico das dez ilhas. (Elsa Rodrigues dos Santos, Prefácio a Obra Poética, de Jorge Barbosa, Lisboa, IN-CM, 2002, p. 18)

PREÂMBULO 
Havia as horas
desertas e longas
da noite rolada
da ilha pequena.

Havia o nocturno
aroma tenuíssimo
tão tenuíssimo que só
o poeta o pressentia
e não era
nem vegetal
nem mineral
nem era
mesmo diluído
o aroma ácido das maresias
nem era da terra
nem era das casas
nem dos fermentos distantes
nem da aragem.

Não era
de flor ou mulher
o aéreo
e vago perfume
que viesse do escuro
da rua solitária
e se imiscuísse
lento
no silêncio
do quarto do poeta
pelos espaços oblíquos das persianas.

Talvez era
com o seu segredo milenário
o cheiro cósmico subtilmente
que só o poeta pressentia
e vinha talvez das estrelas
ou do atrito dos astros no infinito.

Também havia
na solidão da noite
insone e vagarosa
havia para o poeta
a perspectiva
dos sonhos e remorsos...

Havia sombras invisíveis
que todavia flutuavam
sobre a folha branca de papel.

Sobretudo havia
os ecos silenciosos
e as imagens distantes da memória.

De repente
            (vinda
            o poeta não sabia
            de que recanto remoto do inconsciente)
despontou-se-lhe
nítida na memória
entre as suas lembranças tumultuárias
a luzidia gravura
de uma antiga revista colorida.

Era uma estampa
simplesmente
com o retrato de um menino
de terra longe
            mas sucedia
            que o menino tinha à sua frente
            uma grande esfera giratória
            com o mapa-múndi assinalado...

Esplendente
e breve criatura
o tão longínquo infante!

            Contudo
            apenas
            vistoso reclamo em tricromia
            da antiga revista.


















E o poeta relembrou
tão longe no tempo
relembrou o gesto
vago e senhoril
do menino estrangeiro com a sua mão
pequena pousada
solene sobre o globo.

Apesar de imóvel
a distante imagem da revista
apesar de estático
o seu esplendor de iluminura
no fundo da retina
dos seus olhos fatigados pela noite
o poeta imaginou
            um lento impulso
            nos dedos finos do menino
            rodando assim o globo
            inclinado sobre o eixo
            varado em diagonal...

Da rotação surgiram
na visão do poeta
surgiram e passaram
com as suas cores
variadas e cintilantes
            nações
            continentes
            ilhas
            lagos
            gelos polares
            riscos sinuosos
            de rios e fronteiras
            geométricos
            de meridianos e paralelos
            o longo
            traço periférico
            do Equador.

Na fantasia do poeta
súbito porém
ficou suspensa
a rotação geográfica...

E apareceram
quase invisíveis
pontos pingados
no azul luminoso
e atlântico da esfera...

Éramos nós
somos nós
dez ilhas!

Seria que todas
teriam ficado
marcadas no mapa?
Dez ilhas que esperam
ainda o final
deste destino
de todos nós
que há meio milénio
um dia começou!

            Irrompeu então
            na alma do poeta
            o desesperado poema
            da nossa expectativa![1]
(in Obra Poética – Expectativa, 2002) 



[1] Esta expectativa constitui a proposição da epopeia do povo cabo-verdiano.

Cruzaste Mares
na aventura da pesca da baleia,
nessas viagens para a América
de onde às vezes os navios não voltam mais.

Tens as mãos calosas de puxar
as enxárcias dos barquinhos no mar alto;
viveste horas de expectativas cruéis
na luta com as tempestades;
aborreceu-te esse tédio marítimo
das longas calmarias intermináveis.

Sob o calor infernal das fornalhas
alimentaste de carvão as caldeiras dos vapores,
            em tempo de paz
            em tempo de guerra.

E amaste com o ímpeto sensual da nossa gente
as mulheres nos países estrangeiros!

Em terra
nestas pobres Ilhas nossas
és o homem da enxada
abrindo levadas à água das ribeiras férteis,
cavando a terra seca
nas regiões ingratas
            onde às vezes a chuva mal chega
            onde às vezes a estiagem é uma aflição
            e um cenário trágico de fome!
Levas aos teus bailes
a tua
melancolia no fundo da tua alegria,
            quando acompanhas as Mornas com as posturas
            graves do violão
            ou apertas ao som da música crioula
            as mulheres amoráveis contra o peito...

A Morna...
parece que é o eco em tua alma
da voz do Mar
e da nostalgia das terras mais ao longe
que o Mar te convida,
o eco
            da voz da chuva desejada,
o eco
            da voz interior de nós todos,
            da voz da nossa tragédia sem eco!
A Morna...
tem de ti e das coisas que nos rodeiam
a expressão da nossa humildade,
a expressão passiva do nosso drama,
da nossa revolta,
            da nossa silenciosa revolta melancólica!

A América...
a América acabou-se para ti...
Fechou as portas à tua expansão!

Essas Aventuras pelos Oceanos
já não existem...
Existem apenas
nas histórias que contas do passado,
com o canhoto atravessado na boca
e risos alegres
que não chegam a esconder
            a tua
            melancolia...
O teu destino...
O teu destino
sei lá!

Viver sempre vergado sobre a terra,
a nossa terra,
            pobre
            ingrata
            querida!

Ser levado talvez um dia
na onda alta de alguma estiagem!
como um desses barquinhos nossos
que andam pelas Ilhas
e o Oceano acaba também por levar um dia!

Ou outro fim qualquer humilde
anónimo...

            Ó Cabo-Verdiano humilde
            anónimo
            — meu irmão!
(in Ambiente, 1941)

No livro Ambiente de Jorge Barbosa aparecem poemas como "Irmão" em que a viagem à América aparece como a solução aos problemas sociais do arquipélago. Através de um sujeito lírico que foge da terra nessas "pobres ilhas nossas / és o homem da enxada / abrindo levadas à água das ribeiras férteis/ [...] / onde às vezes a chuva mal chega / onde às vezes a estiagem é uma aflição / e um cenário trágico de fome!" vão aparecendo espaços concretos e bem definidos: América, o paraíso do cabo-verdiano onde resolver os seus problemas económicos (e é sob este ponto de vista que é encarada a partida para América) mas que se vai convertendo, a pouco e pouco, num sonho, e o poema, que mantém o tom do discurso empenhado do neo-realismo, transita para a descrição de um estado de alma do sujeito preso da melancolia, da apatia que reflecte a "pasmaceira" ("saudade fina" defini-la-ia Oswaldo Alcântara) do ilhéu: "essas Aventuras pelos Oceanos / já não existem... / Existem apenas / nas histórias que contas do passado, / com o canhoto atravessado na boca / e risos alegres / que não chegam a esconder / a tua / melancolia...". Logo dessa queda do sujeito no mundo do sonho e da melancolia, retoma-se a linha realista e empenhada numa chamada à solidariedade fraterna do cabo-verdiano. (Francisco Salinas Portugal, “Entre a fugida e a viagem: a poética da ilha”, http://home.no/tabanka/literatureart.htm)
 Neste poema de Jorge Barbosa o sistema de valores representados propõe uma violenta inovação, ao converter à dimensão do humano pragmático-ambíguo conceitos que a estética clássica tinha por rigorosarnente irredutíveis. Elevando o trabalhador esforçado à condição de «herói», tributa a destreza deste «Ulisses» caboverdiano com qualidades problemáticas de «nauta proletário + camponês», «alegre + melancólico» para simbolizar a comunidade de uma nação centrada agora no piano popular; obriga assim o paradigma cultural de incidência ética, superior aos grupos humanos como determinava o sistema clássico, a funcionalizar o económico liderado pelo «herói-povo», como convém ao empenhamento realista orientado para o grupo.
Não é novo o procedimento discursivo que valoriza e condiciona a segunda pessoa verbal, agente da «história» que o sujeito elege para seu destinatário; como na estética clássica o sujeito é ainda aquele a quem cabe o poder da palavra libertadora da «lei da morte» e que pode salvar do «anonimato histórico» o «tu», «Oh Caboverdeano humilde / anónimo / — meu irmão!» Porém, novidade é esta função pedagógica que contamina a interlocução quando o sujeito destaca, de entre todos os actos realizados pelo «tu» e vividos acriticamente, os que ele deve (re)conhecer como especialmente produtivos.
De novo, ambiguamente, pois o sentido de solidariedade social niveladora entre o sujeito poético e o povo laborioso («meu irmão ») é uma subversão inovadora paga com uma perigosa relação de dependência, expressa pelo seu compromisso com a matéria-povo dicível na ausência da qual o espreita a « morte» pelo silêncio: pela «perda de emprego », interdita que é a imaginação inventiva. (Alberto Carvalho, “Emergência do discurso da agressividade na poesia caboverdiana” in Les Litteratures Africaines de langue portugaise: a la recherche de l’identité individuelle et nationale, Paris, FCG, 1985, p. 220)


O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
            sempre
            sempre
            dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!

O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...

O Mar! Dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

            Este convite de toda a hora
            que o Mar nos faz para a evasão!
            Este desespero de querer partir
            e ter que ficar!
(in Ambiente, 1941)

Em "Poema do Mar", define poeticamente, e de maneira muito clara, esse desejo de partir tendo que ficar: "O Mar! / [...] / deixando nos olhos dos que ficaram / a nostalgia resignada de países distantes" e o mar acaba por ser a imagem "criadora" da evasão: "Este convite de toda a hora / que o Mar nos traz para a evasão / Esse desespero de querer partir / e ter que ficar!".
 Portanto, na poesia de Jorge Barbosa, como na de muitos outros poetas cabo-verdianos, a condição de ilhéu leva implícita a ideia da viagem: viagem exterior a um destino concreto, ligada ao discurso neo-realista, viagem ao interior do próprio sujeito numa procura de conhecimento, viagem quimérica e impossível na origem de uma frustração existencial ofegante. (Francisco Salinas Portugal, “Entre a fugida e a viagem: a poética da ilha”, http://home.no/tabanka/literatureart.htm)


Lembro as viagens que fazia nos paquetes da Blue Star
quando escalavam o porto da ilha de S. Vicente.
Eram viagens que não passavam nunca do cais
mas punham um alvoroço bem grande no meu coração.

Ora seguia rumo à Europa,
Hamburgo, Paris, Londres...
Ora para Cuba, México, Argentina...

Mas para o Rio de Janeiro é que ia sempre de preferência.

Era à tarde quando ia passear para o cais
(todas as partidas deviam ser pela tarde
porque depressa se apaga dos olhos a terra que ficou atrás).
O bote estava mesmo encostado à escada para me levar
e eu começava a descer o primeiro degrau...

Mas retrocedia logo porque então me lembrava
de que no dia seguinte tinha que pôr a assinatura
no livro do ponto da repartição.

Foi afinal o livro do ponto
onde todos os dias deixava melancolicamente
a minha assinatura e a minha renúncia,
que fez com que todas as minhas viagens
nunca passassem do cais da ilha de S. Vicente...
(in Caderno de um ilhéu, 1956)

A viagem que se propõe como tema ao longo destes textos não é tanto uma viagem física de que a poesia é o seu reflexo ou a sua literaturização quanto uma viagem imaginária, mais no mundo do desejo do que na sua concretização: "Fui afinal o livro do ponto / onde todos os dias deixava melancolicamente / a minha assinatura e a minha renúncia, / que fez com que todas as minhas viagens / nunca passassem do cais da ilha de S. Vicente..." (do poema "Viagens"). Nestes versos resume as suas viagens imaginárias, mas que, sendo viagens implicam o conhecimento e, portanto, "exigem" do sujeito o regresso à casa, a essa nova Ítaca vista com os olhos da experiência acumulada: "Leva-me contigo / navio // Mas torna-me a trazer" porque, embora haja um pequeno navio "que nunca partiu, que nunca partirá", as viagens dos outros acabam por ser apropriadas pelo sujeito: "A poesia está é na sala de verificação / no dia em que chegam passageiros à ilha / e nessa sugestão de outros climas / que ficam por um instante no ambiente" (do poema "Alfândega"). (Francisco Salinas Portugal, “Entre a fugida e a viagem: a poética da ilha”, http://home.no/tabanka/literatureart.htm)

ao poeta José Bizarro
Era para eu
ser panfletário.

Os meus escritos
teriam a verrina
as iras
o rubro
grito da revolta!

Era para eu
ser panfletário.

Combateria
            os tiranos
            os arbitrários
            os agiotas
            os exploradores da miséria
            e do trabalho dos pobres
            os homens poderosos
            e os seus mandatários
            e bajuladores
            e as leis que os protegem.

Era para eu
ser panfletário.

Teria o porte
audaz e altivo
e belo
de um guerreiro.
Levaria nos olhos
a chama e os sonhos
no sorriso um ar
amargo e triste
a cabeça ao léu
impávida erguida
e a cabeleira ao sol
ao vento
e ao frio nocturno
dos secretos e longos
caminhos da fuga.

Era para eu
ser panfletário.

Ao passar pelas ruas
das vilas rurais
então se fechariam
as portas para mim.
Talvez pelo exíguo
espaço de alguma
janela entreaberta
os pais me apontassem
aos filhos tementes
e lhes segredassem
— o panfletário!

Era para eu
ser panfletário.







Escreveria
            panfletos
            sátiras
            libelos
seria
            o inimigo
            o subversivo
            o foragido
            o perseguido
            o réprobro
conheceria
            tribunais
            esconderijos
            cárceres
sentiria
            a fome e o cansaço
            teria no corpo
            a tatuagem marcada
            das torturas policiais.

Era para eu
ser panfletário.

O magnífico
e heróico destino
que eu imaginava
tão liricamente
ser o meu
venceram-no
a prudência
o temor
a família
venceu-o
este meu outro
real
e melancólico
destino burocrático...

Era para eu
ser panfletário.

Não o fui
e ainda me dói
o desejo de o ser...

Mas agora
com o resíduo do tempo
tingindo de branco
os meus cabelos
gotejando
doloroso
nos meus ossos
é tarde demais
para a magnífica aventura...

Era para eu
ser panfletário.
Ilha do Sal, aeroporto, 24 de Novembro de 1966 (in revista África, n° 2, Outubro-Dezembro de 1978. Esta última versão contém ligeiras alterações)


Subtilmente, o poeta enuncia em «Poemas autobiográficos» (1953) e em «Panfletário» (1966) o desejado pelo não realizado, o dito pelo não dito. Traduz por um processo de dissimulação «aquilo que é» e, sobretudo, «aquilo que deveria ser» nas aspirações mais íntimas.
Em «Panfletário», repete esse processo dissimulador, colocando em termos políticos e sociais o desajuste entre o «ser» e o «estar», isto é, as várias razões castradoras da realização da «magnífica aventura» de ser panfletário.
É esta evolução para uma acentuada consciencialização política e social da função da literatura e da arte que irá nortear o terceiro período da sua obra poética – o pós-claridoso ou da mudança. […]
A ironia passa também a fazer parte do seu discurso, funcionando como arma acusatória. Assim acontece em «Meio Milénio», longo poema escrito em 1960, inspirado nas celebrações em homenagem aos 500 anos da descoberta do arquipélago.
No primeiro poema, «Contagem», o poeta refere-se ao tempo que vai de 1460, «ano histórico / do Achamento / para a glória / d’El-Rei Afonso V / e provação de nós todos», ao ano de 1960, «sétimo! na ordem! do Plano do Fomento».
«Duas datas
 facílima contagem
 de 5
 séculos vazios.»
Esta ideia de provação repete-se noutros poemas, terrível constatação do sofrimento do povo de Cabo Verde e do esvaziamento a todos os níveis ao longo dos séculos passados e dos sucessivos Planos de Fomento na era do colonialismo. Daí a «facílima contagem/ de 5/ séculos vazios» ironicamente pronunciada pelo tom jocoso do adjectivo superlativante, acrescido ao numeral em árabe em contraste com o nada ou o vazio.
No segundo poema, «Programa», referindo-se aos festejos que iam ter lugar, onde se cifram os números de 1500 contos «de generosa oferta/ do governo da Nação para as festas centenárias» acentua a mesma ideia de vazio nos «500/ anos vagarosos/ de melancólica expectativa», pondo em contraste a penúria em que se vivia. Os numerais em romano (5 e 500) servem a ironia pelo despojamento da palavra (veículo poético), mas ganhando força na contagem do tempo, protagonista da História.
Sucedem-se vários processos de ironia no decorrer destes poemas de «Meio milénio» em que a dissonância de discursos e os diversos tipos de elocução se conjugam com uma intenção que, embora sarcástica, tem o sentido construtivo dum universo mais justo.
E é no mesmo tom que Jorge Barbosa escreve em 1966, no período de recrudescência da guerra colonial e da repressão em território português, quer no continente quer em África, o poema «Júbilo». (Elsa Rodrigues dos Santos, Prefácio a Poesia Inédita e Dispersa de Jorge Barbosa, Lisboa, ALAC, 1993)

JÚBILO 
Nós não fomos presos!

Por isso dancemos
e cantemos
defronte das prisões.

Não falámos
não dissemos
não gritámos
não protestámos
por isso não fomos presos.

Por isso dancemos
e pulemos e cantemos
defronte das prisões.

Somos todos
sensatos
cordatos
amigos da ordem
por  isso não fomos presos.

Pulemos e dancemos.



Os nossos papéis
não foram devassados
as nossas cartas
não foram violadas
as nossas casas
não foram assaltadas
as nossas famílias
não foram sacrificadas.

Por isso dancemos
e cantemos
e pulemos contentes
defronte das prisões.

E louvemos os homens
prudentes
sábios
poderosos
generosos
que velam por nós.

Pulemos e cantemos
e dancemos.
Ilha do Sal, 23 de Dezembro de 1966


LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
 lusofonia no sapo.org

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