13.12.11
12.12.11
Germano de Almeida
(por: José Carreiro)
Índice
Cabo Verde: uma diversidade confluente
Germano Almeida: nota biobibliográfica
O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo:
- recensões críticas
- proposta de trabalho
Germano Almeida: nota biobibliográfica
O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo:
- recensões críticas
- proposta de trabalho
A literatura cabo-verdiana, tomada na sua globalidade, na conturbada época da independência, manteve uma evolução sem grandes sobressaltos, prevalecendo temas e estratégias textuais e estilísticas que vinham da Claridade ou do Neo-realismo e da Resistência. Não apareceu uma literatura tão drasticamente laudatória e enfeudada ao novo poder político, em comparação com Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau. […]
O aparecimento de duas importantes revistas culturais marcou uma nova geração nascida com a independência. A revista Raízes (1977-1984) teve um carácter oficial, que Ponto & Vírgula (1983-1987), por iniciativa de um grupo independente, procurou evitar. Entre ambas, a publicação das Folhas Verdes (1981-82), na Praia, envelopes verdes com folhas soltas de poesia de variadíssimos autores (desde Osvaldo Alcântara a Vera Duarte), tornou-se um primeiro acontecimento de inventividade. Em Raízes, na tradição de Certeza, mas de âmbito mais alargado, publicaram-se importantes trabalhos (estudos e produção literária). A revista Ponto & Vírgula, confeccionada no Mindelo, assumiu um lugar único entre as publicações culturais africanas da pós-independência (com o melhor apuro gráfico de todas), pugnando pela liberdade temática, expressiva e política, favorecida pelo ambiente mais aberto do arquipélago. Dela se destacou o romancista Germano de Almeida, com O testamento do sr. Napumoceno da Silva Araújo (1989). (in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 246-247)
Germano Almeida, um dos nomes de proa da moderna literatura cabo-verdiana, nasceu na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1945. Saiu da ilha aos 18 anos, indo para Lisboa, onde se licenciou em Direito na Universidade Clássica. Vive na ilha de São Vicente, onde exerce actualmente a profissão de advogado, tendo já desempenhado funções como Procurador da República.
O gosto pela escrita e pelo jornalismo tem acompanhado desde sempre a sua vida profissional. Para além da produção literária, tem sido responsável por projectos tão importantes da vida cultural cabo-verdiana como a fundação, com Rui Figueiredo e Leão Lopes, da revista Ponto & Vírgula (Março de 1983 a Dezembro de 1987), do jornal Aguaviva, de que é co-proprietário e director, e da Ilhéu Editora, em 1989. Colabora ainda habitualmente no diário português Público.
Usando magistralmente as armas do humor, desde a mais fina ironia até ao sarcasmo mais declarado, a obra de Germano Almeida desmascara a hipocrisia reinante na vida pública e privada da sociedade cabo-verdiana que, vista através da sua lupa satírica, se transforma, no fundo, num paradigma de qualquer sociedade. Neste aspecto, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, livro que foi saudado pela crítica portuguesa, aquando do seu lançamento em 1991, como um dos grandes momentos da literatura Cabo-Verdiana actual, é um caso exemplar, narrando a história de um homem que conseguiu enriquecer vendendo 10.000 guarda-chuvas numa terra cujo principal problema é a seca permanente e cuja vida íntima contrasta com a imagem pública impoluta: é depois da sua morte que se vem a descobrir a filha ilegítima, filha da sua ligação com a mulher-a-dias, Chica, que possuía em cima da preciosa secretária Luís XIV do escritório. Já em O Meu Poeta, romance de grande fôlego publicado logo após O Testamento. A sátira sociopolítica ao regime de partido único que durante anos asfixiou a liberdade e o desenvolvimento do país é de tal forma incisiva que o livro foi considerado o primeiro romance nacional da nova República de Cabo Verde.
Obras publicadas:
O testamento do sr. Napumoceno da Silva Araújo (romance), em 1989
O meu poeta (romance), em 1990
O dia das calças roladas (ensaio), 1992
A ilha fantástica (narrativa), em 1994
Os dois irmãos (romance), 1995
Estóreas de dentro de casa (ficção), em 1996
A família Trago (romance), em 1998
A morte do meu poeta (romance), em 1998
Estóreas contadas (crónicas), em 1999
Dona Pura e os camaradas de Abril (romance), em 1999
As memórias de um espírito (romance), em 2001
Viagem pela história das ilhas (investigação histórica), em 2003
Mar da Laginha (romance), em 2004
Eva (romance), em 2006.
O meu poeta (romance), em 1990
O dia das calças roladas (ensaio), 1992
A ilha fantástica (narrativa), em 1994
Os dois irmãos (romance), 1995
Estóreas de dentro de casa (ficção), em 1996
A família Trago (romance), em 1998
A morte do meu poeta (romance), em 1998
Estóreas contadas (crónicas), em 1999
Dona Pura e os camaradas de Abril (romance), em 1999
As memórias de um espírito (romance), em 2001
Viagem pela história das ilhas (investigação histórica), em 2003
Mar da Laginha (romance), em 2004
Eva (romance), em 2006.
O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo
RECENSÕES CRÍTICAS
RECENSÕES CRÍTICAS
O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, romance de estreia do escritor cabo-verdiano Germano de Almeida, é um livro cativante de ler. É-nos contada a história da personagem central, que dá nome ao título, a partir da própria história que o protagonista escreveu em “387 laudas de papel almaço”, guardadas num envelope lacrado, dez anos antes da sua morte. A autobiografia é deste modo encenada em testamento, e o narrador traz à cena o defunto que revela inesperados factos sobre a sua já fantasmagorizada existência. Forma permeável à invenção da própria personagem, que não existe, existindo dela apenas aquele volumoso conjunto de memórias (“o falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias”, p. 9), e forma adequada ao narrador para inventar a personagem do seu herói, começando pelo fim, por essa óbvia evidência de criar, retrospectivamente, o princípio gerador do falecido, a existência fictícia da sua inexistência factual. A ironia começa também aqui.
À maneira de romance policial, somos levados a descobrir as intimidades pícaras da personagem não só pelo relato que faz delas, mas fundamentalmente pela descoberta dos herdeiros até então desconhecidos a quem são legados a maioria dos bens e o volume de surpresas que o testamento guarda como a cartola de um ilusionista. Reunindo os ingredientes cénicos do início de um filme, o livro abre com a leitura do testamento, que dura uma tarde inteira: “iniciara a leitura às 14,45, mas pelas 16,10 confessava-se cansado e já estava sem voz. O sr. Fonseca leu até às 17,20, após o que o sr. Lima, sorrindo com humildade pediu que lhe deixassem também ler um bocadinho. Coube-lhe por isso ler a parte manuscrita, mas numa letra tão miudinha que ele se engasgou por diversas vezes com as palavras e teve de voltar atrás e assim só cerca das 18,30 foi possível aos intervenientes aporem as respectivas rubricas” (p. 10).
O humor e a paródia, sempre presentes neste romance, irrompem subtilmente desde as primeiras páginas, pelos efeitos bem conseguidos do exagero (“quando vira a enormidade do documento lacrado, sugerira não valer a pena perder tempo a ler todo aquele calhamaço”, p. 9), das enumerações metódicas e caricaturais que funcionam contrastivamente, e por antítese, com a seriedade normal a ocasiões do género. Poucas páginas depois. o livro conta um segundo episódio burlesco, o primeiro pedido do morto, o de desejar ser enterrado ao som da marcha fúnebre de Beethoven: “das esquisitices do tio tudo era de esperar, ainda bem que era só isso, ele podia ter-se lembrado de pedir cremação ou afundamento do esquife junto ao ilhéu... Ora a contrariedade surgiu foi quando o chefe perguntou o que era isso de marcha fúnebre e Carlos, já elucidado, respondeu ligeiro que era qualquer coisa de um tal Beethoven.” (p. 16). Não podendo o agrupamento musical corresponder ao desejo, o chefe da Banda reclamou: “Se toda a gente vai com djosa e nunca houve reclamações, porquê o sr. Napumoceno vem agora chatear a gente com essa outra coisa? […] o djosa assim renegado e aviltado, murmurou que qualquer dia apareceria um defunto a pedir se calhar Roberto Carlos ou algum reggeae ou qualquer outra coisa assim.” (p. 17).
Finalmente, descobriu-se a solução, e o enterro acaba por se realizar, parodicamente capitulando o falecido à terra após toda a trama da música de fundo, cerzida ao mínimo pormenor: “Por razões de comodidade de transporte trocou o gira-discos por um gravador e gravou 120 metros de marcha fúnebre numa enorme bobine, repetindo-a 14 vezes. Mas nem foi preciso tanto porque a metade da sétima repetição ainda ia a meio quando ele mandou parar e abriu o discurso.” (p. 18).
Mas, se a ressuscitada vida do já morto dr. Napumoceno da Silva Araújo nos vai surpreendendo, bem como aos recém-aparecidos familiares, sem dúvida que um dos acontecimentos mais significativos da sua desaparecida existência consistiu na forma como enriqueceu e prosperou nos negócios. Talvez este seja um dos elementos temáticos fulcrais em que a ironia, que a escrita romanesca deste escritor constantemente encena, melhor se adequa às tradições da literatura cabo-verdiana: “Porque aconteceu que devido ao facto de o seu armazém ficar situado na zona de Salinas tinha necessidade de se deslocar muitas vezes debaixo do abrasador sol de Agosto, ainda por cima a pé porque nem tinha ainda carro nem aliás sabia conduzir. Decidiu por isso adquirir um guarda-sol.” (p. 59). Não encontrando em todo o Mindelo uma única loja que lho vendesse, o sr. Napumoceno resolveu fazer uma encomenda de 1000 guarda-sóis. Acontece que a nota de encomenda aparece com um zero a mais, e são desta feita 10000 “guarda-chuvas numa terra em que são utilizados como guarda-sol.” (p. 60). Após peripécias várias, chega o navio com a anunciada encomenda: “Porque o navio fundeou de manhã e perto do meio-dia começou a chover. Primeiro foi uma chuva miudinha embora persistente, uma morrinha de chuva como se lhe chamou e que levou o locutor da Rádio Clube Mindelo a noticiar que em S. Vicente chuviscava torrencialmente […]. E por uns oito dias a chuva caiu daquela forma bonita e útil, encharcando o chão, as casas e as ruas. E quando o último lote de 500 abandonou o armazém, o sr. Napumoceno mandou abrir espumante no Royal para todos os presentes, disse que estava a comemorar a retirada dos dez mil.” (pp.63-64).
Sem dúvida que a escrita de Germano de Almeida neste romance traz alguma coisa de novo à ficção cabo-verdiana. Diria, por exemplo, que uma necessária e bem-vinda distância e crítica que lhe permitem a ironia em jogo constante de antíteses hiperbolizadas —, a paródia e a desdramatização de temas antigos como a estiagem, o “flagelo” longamente contado das lestadas[1], os temas insulares que desde os claridosos repunham abordagens necessariamente dramáticas.
Reinterpretação e reescrita, agora sob um outro ponto de vista, em que o humor e a caricatura lembram herança queirosiana, retratando-se o meio mindelense e a vida insular com bem doseada carga de imaginação crítica. Este livro vem talvez confirmar, juntamente com outros textos que nos recentes anos têm sido publicados, que estamos a viver um novo momento de reformulação temática e formal nas literaturas africanas de língua portuguesa.
Ana Mafalda Leite, "Recensão crítica a O Testamento do Sr. Napumoceno de Araújo, de Germano de Almeida",
in: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 131, Jan. 1994, pp. 254-255, http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?issue&n=131
in: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 131, Jan. 1994, pp. 254-255, http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?issue&n=131
O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo
PROPOSTA DE TRABALHO
PROPOSTA DE TRABALHO
A exposição é um tipo de discurso que tem por objectivo informar, definir, explicar, esclarecer, discutir, provar e recomendar alguma coisa, recorrendo à razão e ao entendimento.
O objectivo do trabalho agora proposto é fazer uma síntese interpretativa (a que também se chama resumo crítico) das ideias principais de um conjunto de capítulos de O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo de Germano Almeida.
Momentos específicos desta exposição oral:
1. Reconhecer, genericamente, o ponto de vista do autor em relação ao(s) assunto(s) tratado(s) (o autor questiona, defende, é de opinião, propõe, nega, contradiz, etc).
2. Estruturar as ideias fundamentais do texto, não obrigatoriamente pela ordem em que surgem no original, mas pela ênfase que nele assumem (ATENÇÃO: é obrigatório indicar sempre as páginas correspondentes a cada ideia exposta).
3. Proceder à respectiva análise literária, a saber:
a) Estatuto e características do narrador. Tome atenção às marcas de linguagem reveladoras das atitudes subjectivas do narrador face ao que relata (uso de pontuação expressiva e de modalizadores – vocábulos que expressam certeza ou probabilidade; vocábulos que acarretam juízos de valor).
b) Personagens:
§ quanto à caracterização/composição:
– personagens-tipo, caricaturais (há? Quem são? O que representam?);
– personagens complexas (características físicas, psicológicas, sociais, ideológicas, morais);
§ quanto à participação na acção:
– protagonista (herói ou anti-herói?);
– antagonista;
– personagens secundárias.
c) Tempo, espaço e características do ambiente:
§ época em que se passa a acção;
§ duração da acção;
§ localização geográfica e respectiva caracterização do espaço
§ aspectos psicológicos, morais, religiosos;
§ aspectos sócio-económicos e políticos.
4. Concluir a exposição oral de acordo com as ideias transmitidas e com o efeito e disposição que se pretende causar no auditório (o aluno pode manifestar explicitamente a sua opinião ou o seu julgamento acerca de algum aspecto que ache pertinente no texto em análise).
Material auxiliar permitido: quadro e plano-guia.
LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO, JOSÉ CARREIRO
O Testamento do sr. Napumoceno - resenha
“Mas neste momento penso que era sobretudo um homem que foi apanhado pelas coisas. Desembarcou descalço em São Vicente e não só comprou sapato como enriqueceu. Mas acho que ele mesmo nunca soube como nem por quê, embora seja verdade que era inteligente e tinha uma sorte danada. Mas penso que sempre receou voltar ao Napumoceno de São Nicolau.”
Germano Almeida
A metáfora não poderia ser mais adequada, um testamento cerrado, carta sigilada que, após a morte do protagonista testante, confidencia seus deslizes, dá nome à filha ilegítima e revela uma vida sem as máscaras impostas ou assumidas na trajetória do próspero homem de negócios.
Sr. Napumoceno da Silva Araújo, solteirão de hábitos ponderados e muitas manias, deixa como legado uma carta de trezentos e oitenta e sete laudas, escrita dez anos antes de sua morte. A vida do homem que enriqueceu com a venda de dez mil guarda-chuvas num país onde a seca impera e que continuou a aumentar seu patrimônio com o “sistema de compra-venda-lucro, nada de caixa, razão e outras leviandades afora as estritamente necessárias”, é descerrada pela filha Maria da Graça, fruto de suas investidas na mulher da limpeza, dona Chica, no tampão da secretária estilo Luís XV. Graça, instituída herdeira universal, busca nas palavras e nos pios legados deixados à ex-amante Adélia, ao primo Carlos e à empregada dona Eduarda, conhecer o pai póstumo, seus amores e seus ódios.
Numa narrativa abarcante, o escritor cabo-verdiano Germano Almeida nos apresenta os mundos paralelos, as hipocrisias sociais, a ingratidão e a luta desesperada do menino de pés descalços que vai para São Vicente fazer a vida, enriquece e, apesar de suas conquistas, passa a vida no limbo das classes sociais sem reconhecer a sua origem no pobre menino oriundo de São Nicolau ou ser aceito pela elite local nos clubes aristocráticos.
O sobrinho Carlos foi morar com o tio ainda menino. Decepcionou-o quando não mostrou aptidão pelos estudos na juventude, pois o Sr. Napumoceno considerava que somente os livros e a escola faziam os homens. Contudo, quando teve oportunidade, demonstrou um excelente tino comercial, ampliando e “desburocratizando” ainda mais os negócios do tio. Carlos recebeu a carta com o último pedido do morto: ser enterrado com a marcha fúnebre de Beethoven e o atendeu mesmo tendo sido afastado da condição de membro da família. Sr. Napumoceno deixou-lhe como legado apenas um pardieiro para sua velhice.
A relação ambígua marca a extensão da gratidão e do ódio. Carlos conhecia a história do tio, como ele também fora um menino descalço vindo de São Nicolau. Este fato era suficiente para o Sr. Napumoceno perceber a zombaria em seu olhar e tê-lo sempre sob escorreita vigilância.
Sr. Napumoceno gostava da pobreza envergonhada, de ser o protetor das várias pessoas que batiam em sua porta e lhes rendiam os frutos de uma eterna e humilde gratidão. O homem de negócios bem-sucedido precisava ser generoso para se redimir de ter enriquecido com a desgraça de milhares de cabo-verdianos.
Assim como a vida do homem revelada após a sua morte e com a tentativa dos órfãos de buscarem motivos para idolatrarem ou desmitificarem a história de sua ancestralidade, são as obras dos governos que só mostram seus verdadeiros legados depois de terminados e com cartas sibiladas que muitas vezes só serão compreendidas após muitas buscas e testemunhos.
Germano Almeida alinhava com ironia e sarcasmo uma narrativa ímpar que prende a atenção do leitor do primeiro ao último capítulo.
Helena Sut
Germano Almeida
A metáfora não poderia ser mais adequada, um testamento cerrado, carta sigilada que, após a morte do protagonista testante, confidencia seus deslizes, dá nome à filha ilegítima e revela uma vida sem as máscaras impostas ou assumidas na trajetória do próspero homem de negócios.
Sr. Napumoceno da Silva Araújo, solteirão de hábitos ponderados e muitas manias, deixa como legado uma carta de trezentos e oitenta e sete laudas, escrita dez anos antes de sua morte. A vida do homem que enriqueceu com a venda de dez mil guarda-chuvas num país onde a seca impera e que continuou a aumentar seu patrimônio com o “sistema de compra-venda-lucro, nada de caixa, razão e outras leviandades afora as estritamente necessárias”, é descerrada pela filha Maria da Graça, fruto de suas investidas na mulher da limpeza, dona Chica, no tampão da secretária estilo Luís XV. Graça, instituída herdeira universal, busca nas palavras e nos pios legados deixados à ex-amante Adélia, ao primo Carlos e à empregada dona Eduarda, conhecer o pai póstumo, seus amores e seus ódios.
Numa narrativa abarcante, o escritor cabo-verdiano Germano Almeida nos apresenta os mundos paralelos, as hipocrisias sociais, a ingratidão e a luta desesperada do menino de pés descalços que vai para São Vicente fazer a vida, enriquece e, apesar de suas conquistas, passa a vida no limbo das classes sociais sem reconhecer a sua origem no pobre menino oriundo de São Nicolau ou ser aceito pela elite local nos clubes aristocráticos.
O sobrinho Carlos foi morar com o tio ainda menino. Decepcionou-o quando não mostrou aptidão pelos estudos na juventude, pois o Sr. Napumoceno considerava que somente os livros e a escola faziam os homens. Contudo, quando teve oportunidade, demonstrou um excelente tino comercial, ampliando e “desburocratizando” ainda mais os negócios do tio. Carlos recebeu a carta com o último pedido do morto: ser enterrado com a marcha fúnebre de Beethoven e o atendeu mesmo tendo sido afastado da condição de membro da família. Sr. Napumoceno deixou-lhe como legado apenas um pardieiro para sua velhice.
A relação ambígua marca a extensão da gratidão e do ódio. Carlos conhecia a história do tio, como ele também fora um menino descalço vindo de São Nicolau. Este fato era suficiente para o Sr. Napumoceno perceber a zombaria em seu olhar e tê-lo sempre sob escorreita vigilância.
Sr. Napumoceno gostava da pobreza envergonhada, de ser o protetor das várias pessoas que batiam em sua porta e lhes rendiam os frutos de uma eterna e humilde gratidão. O homem de negócios bem-sucedido precisava ser generoso para se redimir de ter enriquecido com a desgraça de milhares de cabo-verdianos.
Assim como a vida do homem revelada após a sua morte e com a tentativa dos órfãos de buscarem motivos para idolatrarem ou desmitificarem a história de sua ancestralidade, são as obras dos governos que só mostram seus verdadeiros legados depois de terminados e com cartas sibiladas que muitas vezes só serão compreendidas após muitas buscas e testemunhos.
Germano Almeida alinhava com ironia e sarcasmo uma narrativa ímpar que prende a atenção do leitor do primeiro ao último capítulo.
Helena Sut
Liçãon.º 34
Germano de Almeida: vida e obra.
O Testamento do sr. Napumoceno - uma abordagem.
O Testamento do sr. Napumoceno - uma abordagem.
ofonia.com.sapo.pt/germano_almeida.htm
10.12.11
A Herança de CHIQUINHO, Baltasar Lopes
Palestra "A Herança de Chiquinho" - Baltasar Lopes relembrado com emoção |
Escrito por Gab/Imagem Uni-CV | |
quinta-feira, 22/abril/2010 | |
Foi com muita emoção que o escritor e presidente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos, Corsino Fortes, relembrou o mestre Baltasar Lopes da Silva, de quem foi aluno e é ainda admirador. O momento de nostalgia aconteceu na palestra " A Herança de Chiquinho, com os pés fincados em Itália" em que o professor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Roma Tre, Vincenzo Barca, era orador principal. Barca, que traduziu o romance "Chiquinho" para o idioma de Da Vinci, afirmou que aquela obra de Baltasar Lopes é fundadora da literatura cabo-verdiana. Participaram também do evento Alicia Araújo, emigrante cabo-verdiana em Itália e Maria de Lourdes Jesus, ambas membros da associação Maré Caela/ Tabankaonlus, co-organizadora do evento ao lado da Uni-CV. Ontem foi a vez da M-EIA, em São Vicente, receber os palestrantes e ainda a apresentação da versão italiana de Chiquinho, que também viajará a São Nicolau, terra de Nhô Baltas, como era conhecido o autor. | |
FONTE: |
Reitoria da Universidade de Cabo Verde - Uni-CV
Lugar à memória
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Actualmente a Escola Secundária Baltasar Lopes da Silva é uma das mais modernas de CABO VERDE!
Romance pioneiro da negritude: CHIQUINHO
Em 1936, Baltasar Lopes, com a colaboração de outros escritores, como Manuel Lopes, Manuel Ferreira, António Aurélio Gonçalves, Francisco José Tenreiro, Jorge Barbosa e Daniel Filipe, fundaram a revista cabo-verdiana Claridade. Claridade era uma revista de ensaios, poemas e contos. Os colaboradores de Claridade denunciavam os problemas da sua sociedade, como a seca, fome e a emigração. Baltasar Lopes, juntamente com os seus colaboradores, criou melhores condições para o conhecimento das raízes da cultura cabo-verdiana; a revista Claridade salientou o estudo da realidade cabo-verdiana, especialmente dos grupos sociais mais carenciados.
Em 1947, Baltasar Lopes publicou o seu primeiro livro, o romance Chiquinho. Chiquinho descreve os costumes, as pessoas, as paisagens, e problemas sociais e familiares que existiam em Cabo Verde na primeira metade do século XX. É um romance de aprendizagem sobre o povo cabo-verdiano e sobre o destino que muitos cabo-verdianos tiveram que tomar para conseguirem uma vida melhor, o destino da emigração. O romance é organizado em três partes:
- 1. Infância. Nesta primeira parte do romance, o protagonista Chiquinho aprende as suas primeiras letras e convive com a sua família e comunidade na ilha de São Nicolau.
- 2. S.Vicente. Na segunda parte do romance, Chiquinho continua os seus estudos no liceu na ilha de S.Vicente, onde inicia amizades novas e conhece o seu primeiro amor. Chiquinho e os seus colegas de escola fundam o Grémio, uma associação e um jornal que é muito parecido com Claridade, na medida em que tenta operar uma modificação social no arquipélago.
- 3. As Águas. Na terceira e última parte do romance, Chiquinho volta para a sua ilha onde será professor. Esta parte ilustra um dos maiores problemas deste país, a seca, que resulta em muita fome e mortes em Cabo Verde. No fim do romance Chiquinho emigra para os Estados Unidos com a esperança de ter uma vida melhor.
BALTASAR LOPES - tópicos de estudo
Ethos crioulo
imaginário terra/mar
insular/oceano
percursos iniciáticos entre o sensual, o intelectual e o viril
referencialidade e simbolismos humanos
«Clica»:
http://maps.google.pt/maps?um=1&hl=pt-pt&client=firefox-a&rls=org.mozilla:pt-PT:official&biw=1024&bih=443&q=Ribeira+Brava,ilha+de+S.Nicolau&ie=UTF-8&sa=N&tab=il
Se explorares o google earth, poderás entender melhor o modo como a situação geográfica pode moldar o homem/escrita:
«Clica»:
http://maps.google.pt/maps?um=1&hl=pt-pt&client=firefox-a&rls=org.mozilla:pt-PT:official&biw=1024&bih=443&q=Ribeira+Brava,ilha+de+S.Nicolau&ie=UTF-8&sa=N&tab=il
BALTASAR LOPES - materiais de apoio
BALTASAR LOPES
O autor do primeiro romance genuinamente cabo-verdiano, Baltasar Lopes, nasceu na freguesia rural do Caleijão, na Ribeira Brava, Ilha de São Nicolau, em 23 de Abril de 1907, filho de um agricultor, e morreu em 1989, em Lisboa, aonde se deslocara, da Ilha de São Vicente, para tratamento, acometido por doença cerebral-vascular. Quatro livros fundamentais fazem dele o construtor-mor da cabo-verdianidade: o romance Chiquinho (1947), o ensaio O dialecto crioulo de Cabo Verde (1957), a colectânea de poemas Cântico da manhã futura (1986), com o nome poético de Osvaldo Alcântara, e os contos de Os trabalhos e os dias (1987). Para criticar a visão com que do arquipélago ficou o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, após curta estadia, publicou Cabo Verde visto por Gilberto Freyre (1956). Organizou uma Antologia da ficção cabo-verdiana contemporânea (1961) e ainda viu sair um conto, em edição bilingue, Le carnet/A caderneta (1986), aquando das comemorações nacionais do cinquentenário da revista Claridade (1936-1960, nove números). Nunca chegou a escrever (julga-se) a continuação de Chiquinho, talvez com o título de Acushmett street, cuja acção decorreria no espaço da emigração insular nos Estados Unidos, provavelmente em Massachusetts, onde reside importante colónia cabo-verdiana. (in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 202) O Chiquinho é um romance de aprendizagem[1] – um Bildungsroman – a que preferimos chamar romance de iniciação, por três motivos: o tema é o da iniciação de um jovem à vida adulta (como um percurso iniciático, da aldeia à cidade, até à partida para o estrangeiro); foi o primeiro e único romance de Baltasar Lopes; é o romance inicial cabo-verdiano. Como romance de aprendizagem, ou de iniciação, é comparável a dois romances de angolanos, As aventuras de Ngunga (1976; escrito em 1972) e A konkhava de feti (1981), respectivamente de Pepetela (de temática guerrilheira) e Henrique Abranches (de temática étnica). Toda a história do romance está contida numa longa evocação, uma analepse gigantesca. A evocação, no presente do indicativo, indicia que haverá um ponto do discurso em que, ao terminar o evocacionismo, se abrirá um ciclo de narração actualizada. Assim, nos últimos capítulos, o uso do pretérito mais que perfeito e, no último parágrafo, o tempo futuro (prolepse), reforçam a sensação subtil de que o narrador esteve apenas a relembrar factos acontecidos até um momento muito próximo da narração. O romance organiza-se em três partes distintas: «Infância»; «S. Vicente»; «As-águas». Na primeira, narra-se, com intensa saudade, o tempo genesíaco da primeira infância, passada em ambiente rural, afectivo, entre o mundo familiar, as primeiras letras (na escola do Caleijão e no liceu-seminário da Vila de São Nicolau) e as brincadeiras, numa linguagem literária que dulcifica o português com as incursões semânticas e a fluência rítmico-frásica do crioulo. Na segunda, já na cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente, assistimos à passagem para o liceu, aos amigos de tertúlia, ao primeiro amor, aos sonhos e à sociabilização da personagem principal. Na terceira parte, o próprio título, «As-águas», nos remete para o problema da falta, isto é, da seca, e, por outro lado, conota as águas do mar, por sobre as quais Chiquinho sairá, de vapor, a caminho da América do Norte, após presenciar a tragédia da seca e da morte, e a revolta de parte da população. Como se as águas da chuva e do mar simbolizassem, respectivamente, a fertilização da Natureza (terra fértil) e do conhecimento (caminho do mundo). (Laranjeira: 1995, pp. 206-207) O final (que tanta controvérsia tem levantado, pela ambiguidade) solicita interpretações complementares: a) a emigração é a única forma de quebrar o cerco do isolamento e do provincianismo; b) a emigração não é uma desistência, mas uma insistência na melhoria de vida; c) o intelectual que partia, cuidando apenas de si, naquele contexto dos anos 1930-1940, era um intelectual desistente, que deixava os compatriotas entregues à sua sorte, negando todo o seu passado de boas intenções; d) mais valeria um intelectual partir e regressar com outras condições do que ficar, como Euclides Varanda ou José Lima, e ser totalmente inócuo. Final (em) aberto, afinal nunca completado com a intertextualidade de um segundo romance que, retroprojectivamente, abrisse novas pistas de análise do evasionismo como corrente de sentido positivo nessas ilhas desafortunadas. (Laranjeira: 1995, p. 209) [1] O mesmo que romance de formação: incide sobre o processo de constituição e consolidação (cultural, psicológica, social) da personalidade de uma personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estádio de maior maturidade. Chiquinho - Índice da antologia Capítulo 1 – narra-se, com intensa saudade, o tempo genesíaco da primeira infância, passada em ambiente rural, afectivo. Capítulo 7 – episódio da cólera e da ventona (vendaval) e as histórias sobre os negreiros e escravos. Capítulo 19 – a chegada dos baleeiros (simbolizando o apelo da América, que faz recordar o pai emigrado). Capítulo 20 – a visita do embarcadiço Chico Zepa. Capítulo 30 – a previsão de um ano de seca e fome. Capítulo 31 – preparação da ida de Chiquinho para S. Vicente onde vai estudar os 6º e 7º anos do Liceu. Parte II – S. VICENTE Capítulo 3 – a apresentação do Grémio. Capítulo 10 – a crise que atinge o porto. Capítulo 12 – a visita do Governador, tratado ironicamente por Sexa. Capítulo 20 – a Associação Operária Mindelense. Capítulo 1 – Chiquinho dá-se conta de que já se afastou culturalmente da terra da infância. Capítulo 8 – o tio Joca tenta demover Chiquinho de seguir a carreira do professorado; sinais de mau ano agrícola. Capítulo 13 – grande seca, com a miséria, desolação e a morte dos alunos. Capítulo 17 – como consequência da fome, acontece o levante de S. João, conduzido por Chico Zepa. Capítulo 18 – morte de Chic’Ana, devido à fome, e seu enterro. Capítulo 19 – decisão de Chiquinho em emigrar para a América.
Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão. O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de-riba da água do mar. Mamãe-Velha lembrava sempre com orgulho a origem honrada da nossa casa. Pena que o meu avô tivesse morrido tão novo, sem gozar direitamente o produto do seu trabalho. E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso mundo. O nascimento dos meninos. O balanço da criação. O trabalho das hortas e a fadiga de mandar a comida para os trabalhadores. A partida de Papai para a América. A ansiedade quando chegavam cartas. Os melhoramentos a pouco e pouco introduzidos com os dólares que recebíamos. Mamãe deslizava como uma sombra silenciosa no tráfego da casa. Mamãe-Velha não parava, indo de um lado para outro, como se nada pudesse fazer-se sem a sua fiscalização e os seus gritos. A minha avó só sabia querer a sua gente descompondo. Ao lado da casa grande, de quatro quartos, ficava a casinha desaguada, onde Mamãe fazia a despensa, e que nos dias de chuva servia para abrigar as galinhas da criação. Encostada à casa de moradia, ela tinha de longe, com o seu tecto rectangular, inclinado para drenar a água, um ar de bezerro a pojar nas mamas da mãe. A casinha desaguada era a tentação da meninência. Mamãe guardava lá o barril da farinha-de-pau, a talisca que ficava da rala da mandioca e o peixe seco da ilha do Sal, tão bom para se misturar na boca, mesmo cru, com a mãozada de farinha apanhada às escondidas. Os meus dois irmãos mais novos incitavam-me às incursões na despensa. Lela e Nanduca não mediam bem a responsabilidade que resultaria da descoberta do delito. Por isso choravam, quasi gritando, quando eu hesitava: — Mano Chiquinho, Mamãe não vê... Geralmente era depois do almoço que eu me arriscava no interior da despensa. Àquelas horas, Mamãe estava lá para dentro ocupada a escarolar a louça e a tirar o queimado da caldeira para dar ao Baluca, um cão de guarda manhento de comida que nem menino nascido na fraqueza da lua. Ou então ficava sentada no baú a dar pontos na roupa e a botar chapas nas calças da meninência. Mamae-Velha, coitada, tinha depois do almoço o seu descanso bem merecido. A casa ficava mergulhada em silêncio. É que depois da comida vinha-lhe sempre aquela maldita dorzinha no joelho, complicada às vezes de cãibras no osso-de-varanda, que a apoquentava, por via da sombra-de-ar ganha havia anos, depois de uma chuvada que apanhara ao vir da Fajã. Causava mesmo espanto entre os entendidos como aquela mofina dor no joelho só se lembrava vir depois do jantar do meio-dia e não em outra hora. Certa ocasião Mamãe desceu com ela à Vila a consultar o doutor. Mas este, um barbaçanas carrancudo, de olhos brancos, receitou uma xaropagem qualquer que Mamãe-Velha fincou os pés à parede e se recusou a tomar. Não; não tinha jeito aquilo; parecia mesmo vomitado de gato. De mais a mais, entrava tia cabeça de uma pessoa de muita experiência, ganha no lidar da vidinha e na criação de filhos, que dor de ossos se curasse com beberagens? Mais seguro era socorrer-se das mèsinhas da terra, tanto mais que os doutores nunca acertaram com remédio para sombra-de-ar. De maneira que Mamãe-Velha passou a pôr no joelho um cozimento de malva e contra-lierva, estendido em lã de carneiro, e receitado por nhô Luís Babá, homem antigo, de muita lábia, bonita cabeleira branca, e que fazia lembrar aqueles velhos referidos na história de Carlos Magno Assim, depois do jantar do meio-dia, tínhamos jazigo para as nossas aventuras na casinha desaguada. Mal eu punha o último bocado, fazia o Pelo-Sinal e abalava para fora com jeitos manhosos de mula-velha. Mamãe ralhava comigo: — A Virgem Santíssima há-de te dar juízo e governo na cabeça! Pareces o cavalo de nhô António Aninha, não pára nunca na mangedoura... Eu saía direitinho à cancela, para dar a entender que ia ter dos camaradas da brincadeira, mas depois deslizava encostado à parede do tapadinho, dava uma volta debaixo da casa e entrava na despensa. Obtinha a cumplicidade de Tanha e de Pitra Marguida com palmos de tabaco de rolo que apanhava a Mamãe. Nem sempre a operação se fazia sem incidentes. De uma vez o Baluca denunciou-me à saída porque, como lhe tivesse engatado o rabo na porta, começou a uivar com a sua voz esganiçada de sopleta-e-fogo. Naquele dia comi uma sova de lato que me deixou o corpo talhado de vergônteas. Mamãe pegou-me com uma indignação que lhe fazia tremer as mãos. Furtadela só própria de menino sem eira nem beira. De mais, ela não queria que a fama da sua casa fosse injustamente minguada na boca dos linguareiros, que só sabem nicar na vida do próximo. Mamãe-Velha interveio em minha defesa. E foi um chover de atenuantes sobre as minhas culpas. A minha avó só se arvorava em juiz rigoroso quando ela mesma verificava os delitos. No resto, era um passa-culpas de olhar severo. Algumas vezes, depois da ceia, quando Mamãe-Velha estava de maré e o seu cabecear sonolento tardava em vir, revezava com nha Rosa Calita, e contava coisas e loisas que tinha visto e ouvido. Serviam-lhe de pontos de referência o ano da Ventona e a Cólera. — Naquele ano encheram-se os cemitérios e tiveram de fazer enterros fora do sagrado. Ela era ainda menininha, mas tinha na lembrança os horrores daquela quadra maldita da Cólera. Na mesma casa morriam três e quatro pessoas num dia. Não havia lei, nem rei, nem roque. Os homens sãos tinham-se tornado verdadeiras feras sem entranhas. Alguns, quando iam enterrar os mortos, levavam logo de uma vez os moribundos e os sepultavam, para pouparem o trabalho de lhes irem dar terra no dia seguinte. Assim, muita gente foi enterrada viva. Os que tinham posses fugiam da Estância para os pontos do interior onde supunham estar mais a salvo da moléstia. Saíam à noite, para evitarem os ardores do sol, e era uma verdadeira procissão — homens, mulheres, crianças transidas de medo, e as sombras silenciosas dos negros com a carga à cabeça. Muitos negros foram feitos forros então. Cheios de pavor perante a ideia da morte, os senhores livravam-nos dos trabalhos suados nas plantações de milho e hortas de mandioca. Grande negreiro era nhô Maninho Bento, capitão de navios de escravatura. Ia buscar negros à Costa d’África para Cabo Verde, Brasil e Oeste Índia. Os escravos vinham em três-mastros, a monte, e dizia-se que em viagem muitos morriam e os botavam ao mar. Mamãe-Velha ainda conheceu um escravo trazido por nhô Maninho. Falava um crioulo arrevesado, misturado com palavras da língua dele, e todos os dias prostava-se no chão, a matutar não se sabe em quê. Ficaram na tradição as crueldades de nhô Maninho. Dizem até que na casa onde ele morreu há todas as noites grande arrastar de correntes e gritos agoniados. É a alma de nhô Maninho, remorsada pelas judiarias com os negros. Nhô Quimquim Soares era outro Senhor cruel com os escravos. Botava-lhes correntes nos pés para o trabalho. Por qualquer coisa, dava-lhes de rebém e nas cortaduras punha sal e pimenta. Teve um fim triste, nhô Quimquim. Certo dia, só por desaforo de corpo, deu dois lanhos na cara a um escravo da Guiné, rapaz brioso e decidido. O negro suportou a afronta em silêncio, mas à noite, em companhia de outros negros, entrou feito um leão no quarto do senhor e amarrou-o. Levaram nhô Quimquim para o fundo da Tabuga, abriram uma grande cova, e ali o enterraram vivo. Mas de uma maneira geral, os escravos eram tratados quási como família. Tinham as suas festas, e era um gosto vê-los nas danças. Sua grande festa era a Páscoa do Espírito Santo. Nesse dia tinham liberdade. Saíam em procissão, mas tudo com governo: havia reis, rainhas, pajens. À frente, ia o meirão com a vela encruzada ao vento, segurada por uma linha a servir de escota. À noite os negros iam foliar para casa de nhô João Tomé, na Ladeira, onde dançavam lundu e outras danças trazidas da Costa d’África. Mamãi-velha gostava de entoar na sua voz tremida uma dessas músicas de outros tempos, muito arrastada, que os negros cantavam com palavras que ninguém da ilha entendia: Malé, malé; malé combá lêlé assim malé, malé; assim combá samba lélé; assim combá samba lêtán... Quando chegou a S. Nicolau a lei que alforriava os negros, houve grande festa na escravatura. Jireco, negro de nhô Miguel Lopes, foi à casa do senhor quando lhe deram alforria: — Senhõ, já tenho a minha liberdade... — Para que queres a liberdade, Jireco? — Para ir beber vinho de palma à minha terra, nhônhô. Nesse mesmo dia Jireco apanhou grande bebedeira e queria trocar a alforria por uma garrafa de grogue. Levantou um funco no Caleijão e lá morreu miserável tempos depois, à míngua. Alguns negros forros prosperaram com as encomendas mandadas da América pelos filhos emigrantes. O velho Nhenhano Bandeira, hoje mestre-de-tenda e dono de trapiche, era escravo de nhô António Sabina. — No tempo do Dr. Júlio apareceram pateados na terra. Eram encantados que tinham pacto com aquele-homem. Em noites de luar desembarcavam na Praínha, de galeras que ninguém podia ver, vindos de ilhas que ficam muito longe, no meio do mar. Passavam pela Vila em cavalgadas ruidosas, com grande cantarola, mas nenhum filho-de-parida tinha ânimo de abrir a porta para espiar. Subiam a ladeira do Cachaço e dirigiam-se à Cintinha. Referia o povo que chegavam à rocha da Cintinha e diziam: — Sésamo, abre-te! Abria-se a rocha e lá dentro era uma boniteza de endoidecer. Um grande palácio, armado de ricas mobílias. Mesas cobertas das toalhas mais finas. Comidas da melhor qualidade. Luzes por todos os cantos. Músicas que levantavam a alma da criatura, tão bonitas como as da Igreja, no Sábado-Santo, depois da Aleluia. Um ou outro mais destemido que se afoitava a ir sindicar mão via nada, não ouvia nada. Mas, chegado à Cintinha, era um esmorecimento no corpo, uma turvação na vista, nem que o mundo estivesse acabando. E por dias ficava crã, simples, como se a alma lhe tivesse fugido do corpo e a graça do Senhor o houvesse abandonado. O que Mamãe-Velha não conhecia, ou não queria dizer, eram as misérias que tinham levado a maldade dos homens a inventar a lenda dos encantados. Isto — só mais tarde vim saber. Havia ainda os casos dos piratas. Não eram do tempo de Mamãe-Velha. Ela ouvira-os referir às pessoas antigas. Os piratas vinham em navios muito veleiros, autênticos cavalos do mar. Quando sabiam que havia forte, ficavam lá fora a bordejar, à espera da noite. Assim que vinha o betume da negrura, caíam sobre as povoações, e era uma grande desgraça. A gente da costa vivia em constante sobressalto. Por isso, quási todos se fixavam no interior, confiados na defesa das rochas temerosas. — Raça maldita, a dos cartajanas... Estas histórias da ilha impressionavam-me profundamente. Era a vida da minha terra que ressurgia para mim nas palavras pausadas de Mamãe-Velha. E delas desprendia-se este não se sabe o quê que a pouco e pouco ia formando a minha alma de crioulo. Chegaram navios baleeiros na terra. Correu logo a notícia. Navio-de-baleia era fartura para a ilha. Os rapazes alvoroçaram-se, porque todos tinham vontade de ser recrutados. Começaram a chover pedidos aos encarregados do engajamento, pois o número de tripulantes de que os navios careciam era menor do que o dos pretendentes. Desembarcaram para ver a família muitos rapazes que faziam parte das tripulações. Mas não eram rodeados da admiração que cercava os americanos de verdade, que voltavam das fábricas e plantações da América com a algibeira pesada de dólares. Rapaz-de-baleia não traz dinheiro. Trabalha para os outros. Meses e meses nas pescarias do mar do sul e quando regressam à América recebem um pataco furado. Fomos chaleirar o recrutamento, que se fazia na Administração do Concelho. O encarregado era assistido por dois homens de bordo, um deles de olhos muito brancos. Ele distribuía os rapazes pelos barcos: — Este é para a barca “Wanderer”. Você vai para a “Morgan”. Lembro-me ainda da cara triste de Antoninho de nh’Ana Lanta, por não ter encontrado lugar. Era condenado a continuar a vida no rabo da enxada. Tive pena das suas calças rotas, que já não tinham onde pegar remendo. Antoninho e os outros recusados tinham de continuar a ganhar três tostões por dia, puxando nas hortas. De-tardinha, Tói Mulato contou-nos maravilhas dos navios-de-baleia. Até Joquinha Cuscús, o malandro, ficava preso na narração de Tói. — Oh rapaz, lá tem um grandão que é um mundo de navio... — Foste a bordo? — Não me deixaram. Eu bem queria ir, e pedi a um rapaz de bote. —Tens lá algum parente?—disse-me ele. — Não, é só para ver. — Então vai ver a tua avó. Navio não é brincadeira de menino. Zanguei-me, mas ele ficou a rir. — Dizem que os navios trazem no cocuruto dos mastros as almas dos capitães que morreram... Tói Mulato: — Eu quando for grande, serei capitão de navio. Quando eu morrer a minha alma ficará espiando do alto dos mastaréus. — E depois? Continuarás sempre espiando dos mastros? Não poderás aguentar o frio... — Não me importa o frio. Ficarei lá para ensinar o caminho aos outros. — Eu prefiro embarcar numa estrela... — O navio de purgueira que nhô Chic’Ana me vai dar será chamado “Estrela da Manhã”. — O mar é uma horta sem morouços... — Totone Menga-Menga é que disse... — Pedi a Dinha Lua uma casa grande como o Morro Bissau... — E eu uma noiva bonita para me casar quando for grande… — Eu pedi uma varinha-de-condão para me dar toda qualidade de coisas... Toi Mulato: — E eu um navio grande como a barca “Wanderer”, para eu navegar... — E se tu morreres? — Minha alma ficará ensinando o caminho... — Nhô João Joana disse que não é a agulha que mostra o caminho, mas a alma dos capitães que segreda ao homem do leme: “para a direita, para a esquerda”... Tói Mulato era assim. Quando vinham navios grandes fugia à sua dona e ia à Preguiça. Era sova certa de nha Totona quando voltasse, mas Tói não se importava. Nas nossas reuniões não vinham então à conversa os casos que ordinariamente nos entretinham. Ficavam para trás os exemplos de nha Rosa Calita. Ela sabia contar-nos os dramas e as comédias das pessoas que vivem apegadas à terra. Filhas de rei, príncipes à procura da noiva, herois de guerra, tudo era gente que pisava o mesmo chão que nós pisávamos. Conversávamos com eles na intimidade do nosso dia-a-dia. Quando Tói Mulato vinha da Preguiça, os navios que ele vira passavam a nossa cabeça. Era um mundo desconhecido que caminhava ao nosso encontro e que nós não podíamos reter e prender na nossa experiência. A reportagem de Tói Mulato enchia de mistérios a nossa vida. As estrelas da noite eram navios que navegavam havia longos séculos, para nos virem buscar. A Estrada de Santiago, um barco muito branco da forma de um caixão, enfeitado de galões dourados, para enterrar aqueles que morriam de fome. E de manhãzinha, o sol era um velho papai remoçado que vinha num navio iluminado de fogo para nos levar para a América. Chico Zepa, trancador da barca “Wanderer”, veio ao Caleijão visitar a mãe. Todo o mundo foi salvar Chico. Ele falava muito, dando gargalhadas altas. A todo o momento metia palavras americanas na conversa. Chico Zepa fez uma grande festa a nhô Roberto que lhe pediu o avacote que Chico lhe tinha prometido. — Está a bordo... — Com certeza? Olha que sempre faltaste no estreito ao que prometeste no largo.. — Juro! Nha Guida, como está? e nhá Iria, nhô Luiz, toda aquela velhada? — Rebolando... Para nha Tudinha: — Vi seu filho em Providence Rhode Island. Está bom. Parece que vem em Outubro. Nhô João Joana informou-se da América: — Ainda tem light ship à entrada de Betfete? — Ainda. Mas agora governo mandou pôr uma bóia de sino perto do Stream, you know... — Quando eu assistia por aquelas paragens, era preciso olho muito aberto. Mas nunca me aconteceu nada, porque o capitão Luiz conhecia toda a costa como a palma das suas mãos. — Aquilo hoje está muito mudado... Há quanto tempo você esteve por lá, nhô João? — Há anos como areia, rapaz. Com certeza ainda não eras nascido... — Oh Gee... Dei as mantenhas da casa e perguntei notícias do meu pai. Ganhei uma grande admiração pelos modos desembaraçados de Chico Zepa, que lhe davam superioridade sobre os outros rapazes. O que eu sabia da sua infância confirmava esse prestígio que o distinguia dos moços de enxada. Chico não queria saber de disciplinas. Não aturava desaforos. Luta em que entrasse, era dele a vitória. Dizia sempre que não estava disposto a consumir a vida ganhando cinco reis no rabo da enxada. Aproveitou a primeira oportunidade, e anos atrás embarcara na barca «Wanderer». Mas Chico perdeu o barco. Os seus amores com Antónia Bia prenderam-no no Caleijão, e quando chegou à Preguiça já o seu navio tinha montado a Ponta da Vermelharia. Tempos depois descalçou-se. Mas todos diziam que ele continuava o mesmo refilão de sempre, que nem respeitava a barba-cara dos velhos. E depois, ele tinha umas coisas que passavam a cabeça dos outros. Descompunha a enxada, e dizia que não estava para ser escravo, que não tinha raça de negro. Quando condescendia em dar um dia de trabalho, quási nada fazia na horta. Dava uma enxadada e punha-se de pé a chacotear. Para nós os meninos, Chico Zepa não conhecia canseira. Passava tempo esquecido connosco, como se falasse a gente grande. Dizia-nos: — Quem não saíu daqui não sabe o que é mundo. Eu não fico. Dou um salto em S. Vicente e embarco fugido em qualquer vapor... Mas o vapor de Chico Zepa não chegava nunca. Continuava naquela vida de malandro da Agua-do-Canal, contando as pedras da Combota e espiando o mar ao longe. Quando precisava de dinheiro para cigarros, ia dar um dia de trabalho. A mãe descompunha-o: — Não sei a quem esse moço saiu... A mim não, que vou levando a vida consoante Deus é servido; o pai também não, que era um burro de trabalho... Chico quási que só se dava com a meninência. Os outros rapazes faziam pouca farinha com ele. Chico tinha lábia e sabia engodar as namoradas dos outros. E a quási todas foi pondo no peito. O certo é que ele nos tocava de uma maneira diferente. Todos nós nos criávamos embalados nas histórias de cavaleiros que, pela sua honra e pela sua fé, saem a correr mundo, combatendo a toda a hora. Sonhávamo-nos heróis de espada desembainhada. A sugestão das conversas de Chico Zepa prometia-nos uma vida cheia de aventuras, de lances arriscados, de lutas pela defesa não sabíamos ao certo de quê. Contanto que exercitássemos aquela porção de generosidade que fremia na epiderme da nossa alma. Quando eu via os outros, Antoninho Bia, Pedro Xamento, Mané Péta, presos nas hortas, a lombar no duro, considerava-os seres inferiores. Por que não eram como Chico Zepa, que não queria ser criado de ninguém? Por isso tomávamos partido por ele. E quando furtávamos um palmo de tabaco de rolo, era para o cigarro de palha de milho de Chico Zepa. Pela cara que levava, o ano seria de fome. Eu devia andar pelos meus catorze anos, e não me lembrava de ver tanta miséria estampada na cara de todo o mundo. Sempre havia falta. Passado o mês de Fevereiro, era niclitar conforme fosse possível. Os leios de milho e os balaios de feijão quási nunca botavam fora o tempo seco. A criatura tinha de apertar o cordel na cintura e arranjar coragem para encarar o tempo, muito feliz se pudesse ter uma reserva para os meses das as-águas, enquanto a favinha-inglesa não pintava. O mês de Setembro, passados os borrifos certos por Nossa Senhora da Lapa, esteve sem um pingo de água. Com o mês de Outubro nem contar, que chuva nele é rara como ambargrise. […] Um dia chegou pedindo esmola um velho que não conhecíamos. Não tinha nada o ar de pedinchão de nhô José Catrina. Havia dignidade nos seus olhos sérios. — Donde é você, velho? — Sou da Ribeira dos Calhaus, irmão. — Porquê você veio de tão longe? — Falta é que está obrigando... — Você sente-se e descanse. Está com cara de cansado. Mamãe mandou Tanha trazer-lhe uma chícara de café. O velho encarou em Mamãe-Velha: — Estou pensando que conheço você... — De onde, irmão? — Você não é parente daquela gente de nha Rosa Maria Antiga, da Ribeira dos Calhaus? — Sou, sim... — Está-se vendo. A cara não perde... — Seu nome, velho... — Sou Joaquim Naninho, da nação de Gaída Branca, você não conhece? — Conheço, conheço, velho... Gente direita e com quê de seu... Mas então? O velho abriu os braços desconsoladamente: — Aqui onde me vê, sempre estes braços é que foram o meu sustento. Ainda este ano, apesar de fraco, semeei as minhas hortinhas. Mas o que colhetei outrano não me botou fora o mês de Maio, e neste ano nem é bom falar... Acabou toda a esperança. Agora estou no braço da caridade. Parece que Deus se esqueceu de me vir buscar... — Você é só? — Tenho dois filhos que embarcaram faz muito tempo, mas nunca mais deram notícia. Penso que morreram. — Quem sabe, irmão? De um dia para outro são capazes de aparecer… O velho levantou para o céu um olhar carregado de esperanças. Passei cinco anos estudando no Seminário as matérias do liceu. Estava com o 5.° ano. Latim, História, Geografia, Ciências Naturais, tudo isto procurava iniciar-me nos segredos da vida que homens que eu não conhecia criavam fora das pontas e dos rifes da minha ilha. Fui descobrindo que o mundo não se limitava ao universo de nha Rosa Calita e à lenda misteriosa do velho Totone Menga-Menga. Mas continuava extraordinário o seu poder de atracção. O Chiquinho que a cultura liceal ia modelando não era substancialmente diferente daquele que namorava as estrelas, pedia varinhas-de-condão à lua e desejava ter o braço tatuado, como nhô João Joana. Eu era matéria plástica que se submetia a todas as experiências. E todas iam-me deixando seu depósito de sabedoria e perversão. O amor, para mim, não passava ainda do apelo físico das Pimpinha e Nina Zepa, que namorei. Meu coração era como a menina de cabelos cor de luar que, na história de nha Rosa Calita, jazia adormecida à espera do príncipe andante que a iria acordar num dia em que as chuvas caíssem em cordas nutridas, à semelhança de punho de homem, e os trovões estivessem estalando grosso, que nem as trombetas do fim do mundo. Agora eu seguiria para S. Vicente estudar o 6º e o 7° ano no Liceu. Papai deu ordem e Mamãe e Mamãe-Velha concordaram. Era justo aproveitar a minha boa cabeça. Em S. Vicente ficaria em casa de uma nha Cidália em quem nunca tinha ouvido falar. Mamãe-Velha disse, com o seu abundante recheio de autem genuit, que nós ainda éramos parentes. Ficavam-me para trás os campos em que me criei e os companheiros da minha infância. Mas tinha vontade de conhecer S. Vicente. Era a ilha que eu sentia da Praia Branca, quando estive com meu tio, para além da cintura do mar. S. Vicente era para mim a terra em que a civilização do mundo passa em desfile. Estava farto de ouvir falar no Porto Grande, no seu movimento, nos vapores de trânsito, nas imagens da Europa que passeiam pela cidade. Queria ver o mundo. Eu não sentia o ímpeto inquieto de Chico Zepa, de embarcar fugido num vapor, para percorrer os quatro cantos do mar, mas possuía espírito de aventura suficiente para ir até S. Vicente. De lá adivinhava o que o mar escondia aos meus olhos e podia ouvir a voz da minha gente, chamando-me. Entrei em contacto com o grupo de que Andrèzinho me falara. O programa era ambicioso e seduziu-me pelo que revelava de insatisfação e desejo de evasão das realidades circunstantes. Ele despertava em mim o Chiquinho que em S. Nicolau sonhava com aventuras longínquas por esses mares e terras de Cristo, lutando com gigantes, e tomava partido por Chico Zepa, o marinheiro. O programa do Grémio Cultural Caboverdeano afagava esse apelo do desconhecido que enchia de prestígio tudo o que excedia a minha experiência. E depois, Andrèzinho, que o redigira, encontrou expressões magníficas que acabaram de me conquistar. Para ele, os nossos problemas tinham uma tonalidade específica, que resultava do “cerco atlântico” e do “drama ancestral da formação étnica”. O que se impunha era reorganizar completamente a nossa vida, de harmonia com as nossas peculiaridades. Na vida administrativa. Na estrutura social. Na arte. A obra do Grémio era, assim, de profunda renovação: renovação de métodos e programas administrativos, renovação de atitudes espirituais que garantissem a expressão particular, e ao mesmo tempo humana, dos nossos problemas. Andrèzinho deu a fórmula: enquadramento do nosso caso nas aspirações, sempre as mesmas, sob qualquer latitude, da alma humana. O meu amigo tinha o segredo das expressões incisivas, lapidadas em recorte nervoso. Poucos anos mais novo do que ele, eu sentia contudo que a sua inteligência era já adulta. Por isso, os camaradas lhe chamavam o “Erudito”. Era vê-lo, de gestos sacudidos e bruscos, expondo as linhas da nossa acção. Andrèzinho já tinha o 7º ano, feito no ano anterior. Mas passava a vida no Liceu. A ideia da organização do Grémio veio-lhe da camaradagem com condiscípulos mais novos no curso. A minha admiração pelas fórmulas recortadas do “Erudito” assegurou-me lugar no Grémio. Demais, eu representava uma ilha que, no dizer de Andrèzinho, era um “um caso sério” dentro do Arquipélago. — Sim, Chiquinho, aquilo é gente que tem o sentimento da duração. Gente sólida, equilibrada... Heróis da vidinha miúda de todos os dias… Andrèzinho fez-me conhecer melhor a minha ilha. Cenas que eu tinha presenciado, dramas que me haviam impressionado, tudo isto adquiria agora um significado, que a interpretação do meu camarada tornava claro para mim. Fiquei vendo na minha ilha um vasto laboratório de experiências humanas. Gente que não cede ao desânimo, desejo imperioso de defesa, quaisquer que sejam os resultados do esforço. Sobre tudo isto, prementes evasões para o sonho, para a distância, para destinos desconhecidos, que o mar oferece sempre na curva azul e inconstante das suas águas. Resistência moral. Que outro nome podia ter a fé da minha gente semeando, ressemeando sempre? A luta contra as indicações do Lunário, contra o bicho-de-chão, que dá cabo do milho de dois coquinhos, contra a falta de chuva em Outubro, a lestada, o mau clima do tempo. A luta de Chico Zepa, o marinheiro, contra o destino, que não o deixava embarcar para S. Vicente e ali fugir a bordo de qualquer vapor para essas terras longe que para sempre o tinham roubado à enxada. Nhô João Joana de braços tatuados. No braço direito uma rapariga de longos cabelos, que lhe oferecia, no olhar quebrado e langue, as delícias de um amor que não acaba nunca. E vovô morto tão novo a bordo da galera que o trazia para Cabo Verde. Mamãe-Velha devia tê-lo querido muito, vovô com os seus olhos enérgicos, sua pele mate, seus cabelos de indiano, que agora só a moça-do-mar afaga em longas horas de um amor quási enervante. Como vovô devia gostar de voltar cá para cima, para o convés do seu navio, e pescar baleias, lutar contra as surpresas da flor da água e dominar, com a sua jovem coragem, temporais, ciclones, ventos desencadeados! Eu tinha mais três camaradas no Grémio. Nonó, filho da Boa-Vista, era o poeta lírico do grupo. As mornas que ele compunha não tinham o sainete atrevido e saltitante das canções da sua terra. Era sempre uma história de amores tímidos, desesperos silenciosos, pasmos contemplativos perante a morabeza[1] e a graça branda da crecheu[2]. Muitas vezes, no meio de uma conversa, Nonó largava tudo e seguia a serenata que passava, com o seu toque de violão, em cujos segredos Frank Beleza o tinha iniciado. Humberto Tavares era o especialista das questões sociais, na medida em que qualquer actividade não contendesse com o seu sólido bom-humor e a sua insolente alegria de viver. Alcides, da Praia, não tinha função definida no Grémio. Era apenas Cara-Bonita, o ai-Jesus das raparigas do Liceu, que gostavam dos seus olhos ausentes, sua bela face de crioulo moço, seus cabelos ondulados. Agora Alce estava querendo Maninha. Crecheu platónico, sem a lúbrica realidade dos namoros de Humberto. No meu curso do 6° ano encontrei um rapaz que me impressionou profundamente. Manuel de Brito morava no Monte Sossego. Era o mais pobre de todos nós. Alto como um pé de coqueiro, as calças ficavam-lhe muitas vezes a meia-canela. Era o jeito que a mãe, nha Noca, dava ao problema de vestir o filho para ir ao Liceu beber a prenda. — Parafuso, podes dar-me uma ajuda? Era sempre um camarada do curso, ou então os alunos dos anos mais atrasados, com o texto de Cornélio ou Virgílio, ou a retroversão, a necessitarem de intervenção urgente de entendido. Manuel era o latinista que estudava em livros emprestados. Parafuso. Este nome veio-lhe da sua linha física, com certeza. Parafuso, feito Galalão, a torcer lanças em lutas pacíficas contra as surpresas da gramática e da com posição latina. A crise estava apertando. Havia dias em que não entrava um vapor no porto. E quando entrava, era quase sempre vapor de óleo, que não deixava nada. Nha Cidália nunca vira coisa assim. — S. Vicente está uma saudade. Antigamente esta terra tinha movimento... Alzira, ouviste falar da Guerra do Transval... Oh rapaz, as libras andavam atrás da gente... Não sei como se está vivendo nesta terra. Cá em casa, o que vale é a mesada que Eusébio manda, senão tínhamos de sair pedindo por caridade. Lembrava os bons tempos em que só com o serviço da costura sustentava a casa. — Hoje nem um vestido se aparece para a gente coser... Parece que todo o mundo anda nu... Tia Alzira: — Se eu não fosse casada, saía para qualquer parte. Ia, por exemplo, para a Argentina, para donde Eusébio... — Casada? Podes dizer que és casada? Estás é amarrada a um pau bichado. O que é que o casamento te tem rendido? — Nada absolutamente... — Estás vendo... Nunca gostei da cara daquele ranhoso. Não sei por que não tratas do divórcio. Vai ter com advogado, já te tenho dito tantas e tantas vezes... — Divórcio é coisa feia, mana; demais não sei direitamente onde Amâncio mora hoje. — Não tem importância. Dizem que estando o marido ausente não é preciso ele dar assinatura no divórcio. Ana de Brito ganhou o divórcio assim. Terias a tua liberdade. Não é que nos estejas pesando, bem sabes que não. Mas é triste ver uma pessoa sem uma esperança na vida. Ainda és nova, apesar de estares amarrada há tantos anos àquele ranhoso... Andrèzinho escreve. Os óculos dão-lhe um ar de pessoa velha. Nha Cidália repreende: — Já te disse tantas e tantas vezes que faz mal estar escrevendo depois da comida. E, depois, sabes que a tua vista não é muito católica... — Você largue-me da mão, mamã; você não pode deixar uma pessoa trabalhar com sossego? — Pensas que já não sei açoitar de lato, atrevido? Deixa estar que qualquer dia te ponho na ordem... — Deixe-o, por favor, está escrevendo para o jornal... — Ainda vocês estão com essa ideia do jornal? Para quê jornal, Chiquinho? — Serve para muito... A gente defende os interesses da terra. É sempre uma força... — Agora é força... No tempo do Sr. Augusto Ferro não havia jornal, mas esta terra conseguia tudo o que queria. E ele não tinha mais que 2° grau. Vocês aprendem hoje tanta coisa, e no cabo não servem para nada. Eles não falavam tanto, davam uma saltada em Lisboa e arranjavam as coisas lá na fonte... — Havia dinheiro então. Hoje ninguém poderia fazer o mesmo. — Isto é verdade, muitas vezes penso que futuro vocês poderão ter... — Chiquinho, larga as donas da mão e escreve o teu artigo... Lembra-te de que precisamos reunir os originais para a Tipografia. Tia Alzira gosta de jornais. Nos primeiros tempos de casada Amâncio mandava-lhe jornais americanos ilustrados. Havia umas figuras muito engraçadas. Nha Antoninha Leite é que lhe traduzia as legendas. Agora faço questão de publicar o poema que fiz a Nuninha. Ela é que me pediu. Andrèzinho torceu o nariz: — Isto é uma poesia feita a uma mulher de imaginação! Já vos disse que vocês precisam, aterrar, dar o ambiente... No Grémio, depois de um drink, pegou nervosamente de uma tira de papel e escreveu um sumário para poemas: — Estamos fartos de ouvir cantar a beleza abstracta nestes rochedos de seca e fome! Dou-vos material, vocês realizem! Humberto e Nonó aparecem para a cópia. Nha Cidália: — Oh rapazes, para quê tanto escrever? Não vale a pena, vocês não melhoram a situação desta terra. Dali a dez anos não haverá gente aqui... — Mamã, você está pior que Jeremias... Nha Cidália não sabia quem era Jeremias. — Só conheci um, Jeremias Profeta Lopes, moço de S. Nicolau, que era um futra na guitarra, lembras-te, Alzira? Quando soube o que era, ripostou: — Mas é o que tu andas sempre a dizer, filho... — Eu digo certas coisas, ou por outra, não sou eu; apenas dou a reacção da minha inteligência perante o nosso caso. Sou uma retorta em que se dão determinadas reacções, com certos e determinados reagentes... — Não te entendo, dizes coisas, parece que é uma alma que está falando em ti... — Nem você pode entender... — Isto agora é moda nova... A mãe não pode entender os filhos... No meu tempo não era assim... — Escute, mamã, é que nós os novos pertencemos a um mundo diferente. Vocé, a Tia Alzira e também Nuninha são de outro mundo... — Isto é muito engraçado... Eu não sabia que nós já tínhamos morrido... — É isso mesmo! Vocês já morreram... Mas deixe-me escrever, por favor... — E Eusébio, também morreu? — Não, papai é um herói... — O homem chega amanhã... — O homem? Qual homem? — Deves ser a única pessoa que não sabe quem é; Sexa, rapaz... — Vens logo dizer “o homem”... Não adivinho... — Eu era capaz até de dizer que não te interessa a chegada de Sexa... — Interesse imediato não vejo... — Pois interessa — e no mais alto ponto… Andrèzinho concerta os óculos. Há uma ideia que o persegue desde que se falou da vinda do novo governador a S. Vicente. — Estou pensando em o grupo promover uma conferência com o Governador. Será a “jornada da mocidade”. Precisamos ir em peso manifestar-lhe a nossa vontade de viver. Gritar-lhe até, se ele for surdo... — Com que elementos contaríamos? — Ora essa! Mas com a gente do Liceu! E necessário arrancar esta malta da indiferença em que vive por coisas que interessam profundamente ao seu destino. A chegada do novo governador alvoroçou a cidade. Vem da Praia, para onde seguiu da Metrópole a tomar posse do cargo. Depositam-se em Sexa as esperanças de Mindelo, no sentido de se debelar a crise. No Central, as conversas fervem. Pelas mesas, grupos bebem. Joga-se bilhar chinês. Na parede fronteira, um edital convida a população para o desembarque de S. Exª o Governador, que vem “animado dos melhores propósitos e conta com o apoio seguro da Metrópole para uma rasgada política de fomento em prol da Província”. Engraxadores entram no Central à procura de fregueses. O velho Cecílio Firmino abana a cabeça perante os dizeres do edital: — Foi sempre assim, rapazes. Desde que me conheço, todos vêm com as melhores intenções de trabalhar. Mas a verdade è que Las Palmas e Dakar nos tomaram a dianteira... Alguém pregunta: Mas um programa definido do que é preciso fazer? — O mal não vem da falta de programas. Todos têm dado a sua opinião sobre o porto… Há um que defende calorosamente o Plano João de Almeida: — Mindelo transformava-se numaa base naval e de trânsito formidável... Vocês estão a ver o que seria isto fortificado? João Ribeiro, o Ilhéu e o Morro Branco tapavam a entrada. Sem falar que aumentaria a afluência de ingleses: à Inglaterra convinha ter uma base amiga, numa posição estratégica admirável, para a sua política no Atlântico... E os ingleses são libras correndo... — Estou pensando que ponto-de-partida magnífico isto não seria para, uma política pan-lusa no sul-atlântico. A posição geográfica, a meio caminho entre a Europa e a África e a América do Sul… — Aí vem você com a posição geográfica! Isto é já uma cantiga muito estafada... Onde está a posição geográfica especial de Dakar? E, no entanto, a navegação aflui e aquilo tem vida... — Vida própria que nós não podemos ter. Dakar tem movimento de exportação… — Não. O Plano João de Almeida peca por grandioso de mais. Não temos dinheiro para tanto. Se a minha opinião fosse pedida, eu apresentaria bases mais modestas, mas mais viáveis. Supressão pura e simples das mil taxas e alcavalas que pesam sobre a navegação. Livre concorrência para o estabelecimento de depósitos de carvão e óleo. Repressão da mendicidade, afastando dos olhos dos estrangeiros a multidão que os assalta pedinchando, mal desembarcam. Para tanto, criavam-se receitas especiais à câmara para albergues, recolhimentos e uma maternidade. O Sr. Cecílio Firmino continua a abanar a cabeça: — Quando vem um governador, vou invariavelmente deixar-lhe o meu cartão. Se ele me parece de boa cara, peço-lhe uma conferência e digo-lhe o que penso cá dentro. Sai-lhe por um ouvido o que lhe entrou pelo outro? Não me interessa. Durmo o meu sono sossegado, porque cumpri o meu dever. Lá diz a Bíblia: eles têm ouvidos e não ouvem... Não tenho a culpa quando são surdos... S. Vicente tinha de fazer ao governador uma recepção que o impressionasse bem e lhe fizesse ver a importância capital do Porto Grande na vida económica e financeira do arquipélago. — Deixá-los falar: nunca deu certo a política de afastamento que em outros tempos foi adoptada relativamente aos governadores. As coisas tinham mudado – e a valer. Por que é que a Praia conseguia tudo? E que ela é mais diplomata. Faz a corte aos governadores. Lá Sexa sente-se verdadeiramente o chefe, a cabeça que manda e a mão que dispõe. Lá vai-se ao palácio. S. Vicente precisava pôr debaixo de uma pedra aquele orgulho de fidalgo arruinado que indispunha todos os governadores. Era preciso receber Sexa condignamente. Atraí-lo. Era de boa política. É claro que isto não excluía uma exposição enérgica de verdades sobre os males que afligiam S. Vicente. Tudo tem a sua medida. Receber o governador condignamente, sem dúvida, mas também, embora com o devido respeito, falar-lhe de cabeça levantada sobre as medidas que as circunstâncias urgentemente exigiam. O programa girava à volta do problema do Porto Grande. Resolvido este, o problema geral do arquipélago estava quási solucionado. — Lá o disse o Dr. João Augusto Martins: o Porto Grande é o pulmão por onde Cabo Verde respira... — Belo livro esse... Como “Madeira, Cabo Verde e Guiné”, ainda nenhum outro caboverdeano escreveu. Lá tem um capítulo sobre governadores e governantes, que é um monumento da actualidade... O Sr. Manuel Abrantes conheceu o Dr. Martins. Feio como um macaco, mas muito interessante... — E republicano histórico. O seu cadáver foi velado em Lisboa, na redacção da “Lucta”. Discutiu-se que discurso conviria fazer ao governador no dia seguinte, na Câmara Municipal. Devia ser um discurso recheado de factos, pondo todos os pontos nos i.i. Sexa devia ver logo de entrada que havia muito por onde pegar. O Sr. Cecílio Firmino: — Muita falta nos faz nesta conjuntura o Rebelo de Oliveira. Oh rapazes, se ouvissem o discurso que ele fez quando Joaquim Nabuco passou em S. Vicente... O velho assistiu ao banquete que o cônsul brasileiro ofereceu a Nabuco e comitiva. — Belo começo que ele teve: “Eu, talvez neto de escravos, curvo-me reverente e beijo as mãos do redentor da minha raça!” Nabuco estava empolgado. Parecia hipnotizado pelo discurso. No fim estava ele em frente de Rebelo, recebendo na cara as rajadas... — É que Nabuco era surdo, homem... A Associação Operária Mindelense renasceu. Os delegados das companhias acudiram pressurosamente ao nosso apelo. Zeca Araújo foi perfeito. Visitou os capatazes e expôs-lhes o assunto. Depois nos confessou que meteu coisas por sua conta e risco. — Para maior facilidade, disse-lhes que é uma medida geral para todas as ilhas. Baixou lei da Praia determinando que todo operário se unisse, pois o governo quere entrar directamente em contacto com as suas necessidades. —Você não devia ter mentido, Zeca. Nós lutamos só com a verdade... — Ora essa! Verdade ou mentira que foi ordem do governo, não é ajuntar essa gente que vocês querem? Vê-se bem que vocês não têm prática da vida... No fim é o mesmo... E deixe-me dizer-vos que a minha ideia deu um resultadão. Vocês sabem, nestas coisas o melhor é a gente meter o governo. Ele é que manda.... — De acordo. Mas a ideia é nossa... Você precisava ter-lhes frisado que a mocidade das escolas não está divorciada da vida e tem a consciência dos seus deveres. — Deixa estar que também toquei este disco. Eu disse-lhes: “Tem aí agora uns rapazes do Liceu que pensam em vocês. Com eles é que devem falar. Governo encarregou-os de tratar deste assunto”. Tanto que os delegados vieram ter de vocês... — Não aceitamos os seus processos, Zeca. Bem, mas você conseguiu o que queríamos. Vai agora uma groguinha? —Titio não nega... —Vá lá, que você tem algumas qualidades... — É deveras... Agora titio quere a patrícia... Mestre Ambrósio não quis ser nada na Associação: — Espírito está em toda a parte... Não preciso sentar-me na cadeira para eu estar de alma e coração com os meus irmãos... — Mas você também trabalhou muito, contribuiu imenso para que a Associação se levantasse... — Não faz mal. Quando espírito está presente, eu estou, tu estás, ele está, nós todos estamos... Foi Mestre Ambrósio que espalhou a ideia entre os trabalhadores da terra. Zeca Araújo ofereceu os seus serviços. — Tratarei da escrita na loja da Cooperativa... Entrava nos nossos planos a Associação ter uma loja para vender géneros de primeira necessidade aos associados, pelo custo e despesa. Sentíamos sangue novo nas veias. Andrèzinho: — Amanhã, quando pedirem contas à nossa geração, ela pode apresentar esta verba no activo. A ideia de fazer ingressar os pequenos nego dantes da baía foi minha. Castanha foi o nosso intermediário. — Castanha, que pensam os bumboatmen acerca da sua situação? — Nada... De resto não há vapores, não há bumboatmen — Mas vocês reunidos teriam mais força... — Ora! A nossa força não chama a navegação para o porto… — Não é tanto assim. Isolados é que nada podem fazer... — Podemos fazer como os macacos: tapar os buracos e ir ao fundo... Ainda assim, talvez seja melhor... Mas José Castanha comprometeu-se. Ficou de falar com os companheiros. Não tinha, porém, nenhum entusiasmo. — Vocês desculpem, mas parece-me que isto não dá nada, já vi muita coisa nesta terra. Aqui é cada um por si, Deus por todos. Todos faltam no estreito ao que prometeram no largo... Vou trabalhar para vocês. Mas não aqueço muito isto. Qualquer dia dou um pontapé em tudo e voa para Dakar. — Então sempre pegou aquela proposta que você fez a Luísa... — Qual pegar! Ela o que é, é uma soberbona e uma sovina. Lá por ter algum dinheirinho ganho com o negócio do corpo, pensa que é mais que todo o mundo. Mas deixa estar, nós todos somos filhos de Deus. Soberba saiu da boca e caiu no regaço... O nosso plano ampliou-se. Eu mesmo lembrei que havia nas ilhas sindicatos agrícolas. Não funcionavam, mas estava tudo regulamentado desde o tempo do governador Fontoura da Costa. Estivemos a consultar as colecções de boletins oficiais de 1917. Concluímos que devíamos mandar circulares para as ilhas. Encarreguei-me de S. Nicolau, para onde escrevi particularmente a José Lima, antigo seminarista de regresso da América, onde fora emigrante. Conseguida a reorganização dos sindicatos agrícolas, trataríamos de congregar todas as associações numa Federação dos Trabalhadores Caboverdeanos. Andrèzinho: — Bem, meninos, nós estamos dinâmicos... Conseguimos reunir os trabalhadores de S. Vicente. Precisamos agora de qualquer atitude que mostre de forma concreta ao público a nossa inteira solidariedade com aqueles que de facto trabalham nesta terra. Foi decidido que o grupo passasse a usar fato-macaco. Dias depois estávamos todos envergando o trajo operário, com as iniciais A. O. M. bordadas. Durante algum tempo fomos objecto da troça indígena. Por onde passássemos gritavam-nos das esquinas: — Ah home! Nuninha achou que éramos de facto homens. Perguntei-lhe se ainda me queria bem com o trajo de ganga. — Tu és homem, Chiquinho. Ficas tão diferente desses rapazinhos luxentinhos... — E se amanhã eu for operário numa terra grandona? Queres ser a operária da casa deste que te está falando? — Maluco! E se fosses? Operário é gente, Chiquinho... Quero-te de qualquer maneira. Meu coração só por ti anda a viver... — Então, fica entendido: quando eu for operário numa cidade grande, tu serás a dona da casa de um trabalhador chamado... Como se chama o teu operário, Nuninha? — Não sei... — Tens vergonha? Diz-me aqui ao ouvido... Qual é a primeira letra do seu nome? — Mas tu não vais partir, não, Chiquinho? Se fores, leva-me contigo... —Se eu for mandarei buscar-te... — Para a tua casa de operário... —Para a minha casa de operário... O meu primeiro contacto com a minha gente foi quási doloroso. Apesar da alegria que no fundo de mim havia em reencontrar os lugares e as pessoas que haviam formado o meu mundo de criança, ainda tão próximo, era quási um estranho que Mamãe e Mamãe-Velha recebiam na nossa casinha do Caleijão. Eu já não tinha mais o mesmo sentido para a frase que a minha avó constantemente repetia: — Esta casa foi feita com dinheiro ganho de-riba da água do mar... Por que não sentiria eu ainda o frémito de entusiasmo heróico que me possuía quando Mamãe-Velha recordava a figura do marido morto tão novo? Lá estava sempre no mesmo lugar da parede, a gravura da pesca da baleia, diante da qual eu sonhara tanta vez. Por que me haviam dado alguma instrução, por que me haviam feito viver a experiência de S. Vicente, em que o arquipélago desemboca com as suas ilusões, imediatamente seguidas de desencantamento? Para quê? A revolta surda que eu senti contra aqueles que me puseram na prenda, para fazerem de mim homem grande, homem de capacidade... — Este menino está diferente — dizia constantemente Mamãe-Velha. Titio Joca veio logo da Praia Branca ver-me. Com seu jeito estranho de dizer as coisas, começou por me dar pêsames. E os seus pêsames caíram-me como a própria verdade, no coro alvoroçado dos homens de enxada, das mulheres da lenha de tortolho, e dos velhos encanecidos no trabalho das hortas e nas manobras dos veleiros, para quem o saber é a maior riqueza deste mundo, e que iam salvar alegremente o menino esperto que tinha tanta prenda na cabeça. — Este menino está diferente… Ainda assim, Tói Mulato era quem dava companhia ao meu espírito. E eu sentia uma outra espécie de respeito perante os velhos que falavam da vida nhanida da enxada, dos horizontes do mar, e das belezas incomparáveis que ele guarda aos seus heróis. Não compreendia como a minha inteligência não tinha conseguido absorver as emoções elementares que me solicitavam para aquela terra que me achava diferente. Totone Menga-Menga era sempre um velho muito velho morado numa casinha coberta de Palha no massapé do Chamiço. Lela e Nanduca continuavam gostando dos casos de nha Rosa Calita. Ela aparecia sempre, com o seu farol apagado e as suas histórias. Eu era da mesma idade que os meus irmãos mais novos, ao ouvir aqueles casos todos de Roldão, de Brancaflor, de Galalão. E Ti Lôbo enganado por Chibinho. De-dia, quando não andava fora, em longos passeios, ficava encerrado no meu quartinho. Lela e Nanduca tratavam-me com respeito grande. Servia-me disso para lhes proibir a entrada no nosso quarto comum. Muitos me achavam orgulhoso: — Chiquinho virou soberbo com a prenda que foi buscar em S. Vicente... Senti cruelmente a falta dos meus companheiros do Grémio. Queria era ter ali comigo Andrèzinho levantando teses sobre a situação humana da minha ilha. Sorria-me ao vê-lo reagindo perante o caso de S. Nicolau, com seu gesto de cortar o ar com a mão direita. — Nós somos pássaros engaiolados. E o pior é que a porta da gaiola anda sempre aberta, e contudo não podemos sair dela… Nónó fazendo as suas mornas e preconizando poemas sobre motivos que fossem nossos, bem nossos: — Rapazes, vamos condenar os fiordes da Escandinávia a degredo perpétuo… E Cara-Bonita também. Alce tinha gostado de Maninha. Mas veio o Tubarão e levou-a. Os marinheiros do cais e os rocegadores de carvão da baía tiraram das suas entranhas a morna dolorosa e lúgubre do Tubarão: Tubarão, tubarão, bô é mau, Oh mar, bô ê funde... O marinheiro pede ao tubarão que tenha piedade, para ele poder ver outra vez os seus irmãozinhos. Mamãe era muito velhinha e não podia mais trabalhar. Eu desejava adormecer ouvindo as mornas de Nónó. Como “Eclipse”, que tirou quando foi repetido por uma moreninha que ele queria bem. — Este menino está diferente… Escrevi longas cartas aos meus camaradas. Descambei na lamentação lamecha, que sempre me repugnou. Depois fiquei esperando com uma espécie de terror a vergastada seca que o “Erudito” me havia de dar na sua resposta. Procurei não pensar em Nuninha. As minhas esperanças de casamento, nascidas com a chegada do novo governador, foram emoção ocasional de uma tarde de S. Vicente, morrendo docemente no desamparinho do crepúsculo. Os montes em volta desmaiando cor de bougainville. A velha da esmola desejava que nós fôssemos um casal muito feliz, com filhos como areia. O que eu sentia à minha volta não possibilitava o meu casamento com Nuninha. — Quero ver se no teu coração tem lugar só para mim... Mas eu via-a na minha frente. Enternecia-me, chorava, sentia raiva de Nuninha enganando-me, tinha ciúmes, e redigia mentalmente cartas tremendas rompendo. Melhor ainda um seco cartão de visita: FRANCISCO ANTÓNIO SOARES agradece os momentos agradáveis, e lamenta comunicar que a sua vida tem agora um sentido diferente. Nuninha não compreenderia os dizeres demasiado literários do cartão. Ensaiei nova redacção. Mas não encontrei estilo exacto. Caí em crises de sentimento. Queria ter Nuninha junto de mim, beijar o seu cabelo ondulado e os seus olhos cerrados. Não pensava em aspirar-lhe a boca veemente. Mamãe-Velha não me largava à hora das refeições. Devia ser fraqueza. S. Vicente não tem comida forte que dê boa substância ao corpo. Tudo já lá chega murcho. — Nada como a comida que a gente tira da horta e sabe de onde vem... Depois, eu tinha dado um grande pulo. Estava agora um verdadeiro homem. Tinha arca que exigia comida para se encher de carnes. Com um bocadinho mais de almofada, eu era a figura de meu avô. — Basta, Chiquinho faz-me lembrar só Que-Deus-Haja... E vinham os pormenores da semelhança, o tamanho do corpo, os olhos, a boca e principalmente o cabelo de indiano. — Lela e Nanduca puxaram mais para António Manuel... .Nina, coitada, era a minha figura. Mamãe acrescentava que parecíamos gémeos. Tão boazinha, Nossenhor a quis para si. Nós dois tínhamos puxado para o moço pescador de baleias que morreu no mar quando o seu navio desapareceu no Golfo, em viagem da América para Cabo Verde. […] O ano agrícola começou com boa cara. Com a chuva geral logo em princípio de Agosto, toda a ilha foi semeada. Em nossa casa foi a azáfama de sempre, que bem conheci nos dias da minha infância. Tantos litros de milho de semente para este, tantos para aqueloutro. Mamãe recomendava sempre aos meeiros que semeassem todo o milho, não cedessem à guloseira de aproveitar parte dele para a comida. Pitra passava todo o dia fora, fiscalizando o trabalho nas hortas que cultivávamos directamente. Ele continuava sendo o homem da casa. Eu era um verbo encher no meio de toda aquela actividade que se agitava à minha volta. A prenda que tinha na cabeça imunizava-me contra o trabalho agrícola. Enxada não é para gente aprendida. Eu era da categoria de Cabeça-de-Gato-Totonha, que só servia para a guarda dos corvos. Bem queria fazer qualquer coisa, mostrar que era homem como qualquer um. Também não contavam comigo em casa para uma ajuda nos trabalhos. Chiquinho, com a prenda que tinha, estava marcado para um lugar público. Enxada era para os outros, que tinham ficado bestas, apenas lendo e escrevendo, sem tanta coisa na cabeça como eu. A alegria animal que eu sentia vendo chuva chovendo não compensava as alfinetadas que a certeza da minha inutilidade dava ao meu orgulho. No cabo, valia menos que Lela e Nanduca. Estes, ao menos, ajudavam na guarda de corvo e iam cedinho em companhia das mulheres que traziam o leite das nossas vacas largadas no campo. Vinham de lá pletóricos de força, sentindo no corpo o leite espumoso pojado das mamas das vacas. E o dia fora, no tapadinho da Horta Nova, as suas vozes infantis repetiam o mesmo grito alegre que Chiquinho soltava havia anos. Mamãe-Velha era a única que me descompunha e achava que o que eu tinha no corpo era calaçaria. Eu devia andar atrás dos trabalhadores, em vez de, volta e meia, estar caído na Vila, a ouvir as conversas daquele velho tonto Sr. Euclides Varanda. A minha avó não perdia os seus jeitos de dono. Para ela toda a nossa vida se fazia à custa do que o marido ganhara de-riba da água do mar. Não tomava em conta o que António Manuel tinha agenciado e os dólares que mandava de 102 South Second Street. Exercíamos uma espécie de pequena realeza no Caleijão. No meio da pobreza geral, a nossa pobreza menos rapada dava-nos fama de apolentados. Não era preciso muito para mantermos o título: bastava que não nos faltasse a farinha-de-pau no barril, leios de milho nas cantreiras, e que da América recebêssemos de quando em quando alguns dólares enviados por Papai. Como a chuva começou a escassear em Setembro, depois de Nossa Senhora da Lapa, e o dinheiro americano chegava cada vez menos, os comerciantes não davam prazo. Nenhum negociante tinha coragem de emprestar tantas quartas de milho para receber redobrado nas novidades. Era cheque sacado sobre desgraça certa, visto o ar do tempo. A alguns íamos socorrendo como nos era possível. Sempre com as descomposturas de Mamãe-Velha. Mas também, já a conheciam. Não metia medo a ninguém a cara assanhada com que ela recebia menino ou mulher-de-menaja com jeito de ir pedinchar: — Vocês querem é despir um santo para vestir outro! Se nos faltar milho na cantreira, quero saber quem toma a responsabilidade desses meninos! Se calhar é você, com essa cara de gongom-dado-de-azeite... Não ligavam. Iam falar directamente com Mamãe. Pouco tardava para a minha avó esquecer a zanga e continuar no conserto da roupa, com a sua dedada firme que os anos respeitavam sempre. Pitra Marguida trazia as piores notícias das hortas. Milho murchando, com as folhas enroladas, como cebola. Os gafanhotos começavam a aparecer. Já seria altura da monda, mas até ela vinha escassa e morrinhenta. Contudo, ninguém largava as hortas. Todas as tardes era certa a passagem de gente que morava da Horta Nova para baixo, vinda do trabalho do dia. Os meninos com os feixinhos de gremim e soca nova para as alimárias do pé-de-porta, e a enxadinha de cabo magro balançando com orgulho no braço. Quando Deus quere, dá milho de-riba de pedra. Ainda havia esperança. Novecentos e dezoito tinha sido a mesma coisa: carestia até meados de Setembro e depois chuva compassada que garantiu o ano. S. Mateus não ficaria assim, equinócio é mal-criado e não respeita nem os navios no mar. Por Nossa Senhora do Rosário a festa havia de ser boa. Havia anos Chico Zepa organizara a Divina no Caleijão. Era pretexto de Chico, para ter mais jazigo de apalpar e abraçar as cantadeiras no escuro. Faziam-se projectos sobre a marcha para a Vila, à noitinha, para levar a Divina à Igreja, no dia de Festa de Outubro. Caleijão não ficaria a dever nada às outras ribeiras. O milho já estaria espigado e barbado para as canas-de-igreja que ornamentariam a mesa. No cortejo haveria também plantas de mandioca de duas as-águas, favinha inglesa, já com as vagens pintando, rebentos novos de cana-sacarina. Para a coroa de Nossa Senhora, flores de amor perfeito e cravos. Do Alberto viriam rosas amarelas. As sempre-noivas seriam para os namorados saberem, debaixo do campanário da Sé, à hora da recolha da Divina, quando haviam de se casar. Até Cabeça-de-Gato-Totonha se mostrava animado. Da sua boca rasgada de borda de tacho vinham sons que o hábito tornara inteligíveis. Passava o dia sentado no quintal da casa a namorar o seu jardim de manjerona e enxotando moscas com um abano de rabo de vaca. Depois da guarda dos corvos, Totonha entrava em férias. As suas pernas tortas de macaco manco não lhe permitiam dar uma ajuda na monda ou no trabalho-de-milho. Mas ele tinha o seu processo de adivinhar as chuvas. Punha caroços de sal por ordem, figurando os meses. Quando um caroço revia água, era chuva certa no mês. A sua experiência deu chuva em Outubro. Foi uma grande festa em toda a cara de Totonha. Mas no aguentava muito a conversa. Ia logo a seguir tratar dos seus pés de manjerona, consertar-lhes as ramas que os garotos estragavam. Ninguém lhe pedisse raminhos para fazer chá. As manjeronas de Cabeça-de-Gato-Totonha eram como criaturas humanas. Viviam a sua vida consoante Deus fosse servido. Quando um pé secava, Totonha ia enterrá-lo com grande cerimonial, sobre os ombros uma estola de saco, como padre em enterro. Os seus caroços de sal marcavam chuva em Outubro. Nhô Mané de Ramos viu no Lunário e confirmou. Mas Totone, consultado, aconselhou a criatura a amarrar o cordel na cintura e confiar na graça de Deus. Titio Joca deu em Outubro uma das suas saltadas ao Caleijão. Éramos dois camaradas, como se nos não separasse uma distância de mais de vinte anos. Titio já era assim quando, tamanhinho, estive em sua companhia na Praia Branca. A mesma liberdade que lhe fazia confidenciar-me a sua vida amorosa e os meninos com que as suas mães-de-filho o brindavam todos os anos. E o mesmo calor de intimidade também, com que me tocava profundamente quando me chamava aos joelhos e me narrava na sua voz comovida as histórias dos heróis da honra. Contei-lhe toda a minha vida. S. Vicente e as moreninhas que amei. O meu romance com Nuninha. Andrèzinho e o Grémio. Tive de lhe entoar as mornas de Nonó. Titio procurou laboriosamente apanhar na rabeca de António Pedro a melodia de “Eclipse”. Morna boa, só de a gente adormecer muito docemente nos ombros de uma rapariga. Titio entusiasmava-se. Sublinhava o canto do violino com a voz. À noite, em frente da casa, pôs os garotos que apareceram chaleirando a tocar a morna do meu camarada. Mamãe tinha tomado para criar o filho que Zepinha pariu com Pitra Marguida. Já fazia parte de uma banda de meninos, cujos instrumentos eram talos de cana de carriço com casa-de-aranha nas aberturas. A banda foi a orquestra do meu tio para a morna de Nonó, no terreiro da casa. Titio deu as piores notícias do ano agrícola no sul. A nossa horta na Covoadinha, nem pensar em palha, sequer. Perguntou-me quais eram os meus planos para a vida. Não soube que responder-lhe. A única abertura à minha frente era ser professor de posto-de-ensino. Joca Pires também era professor de posto no Paul de Santo Antão. Era o destino dos que saíam do Liceu. Andrèzinho professor de posto-de-ensino. Teria, pela certa, má informação no fim do ano. Devia ser espectáculo curioso uma aula do “Erudito”. O a. b. c. seria vencido pelas pregações sobre coisa que os meninos não entenderiam direito. Eu tinha metido os meus documentos para concurso. Mamãe acalentava aquela ambição. Óptimo se eu conseguisse ser colocado no Caleijão. Seria muito bonito um filho da ribeira dando lições na Casa-de-Aula. António Manuel, em 102 South Second Street, havia de gostar, ao ver o resultado da prenda do filho. Eu deixava-me manobrar, sem vontade própria. Não sabia para onde dirigir com segurança os meus passos. A vida agrícola não me dava possibilidade para coisa nenhuma. Queria era casar com Nuninha. O nosso lar seria um lar de artistas. Eu próprio me ilustraria mais para lhe dar cultura. Aprenderia violino. Ela seria pianista. Povoaríamos as nossas noites com horas de perfeita espiritualidade. Eu tocando violino. Nuninha ao piano. Ela devia ser uma pianista fremente, com seus nervos tumultuários. Construí a nossa casa no alto da Horta Nova. Amplas janelas rasgadas para o Mar do Norte. Na face sob o rochedo, a nossa cela de artistas. Para que ninguém perturbasse o nosso sonho quotidiano de arte. Eu tinha revistas francesas sobre estilos e artes decorativas. Um rádio na divisão da frente, para nós nos sintonizarmos com a “melodia do mundo”. A energia para o aparelho e para a luz vinha do wind-charger. Tínhamos uma sala para aulas de música. Era necessário aproveitar a vocação musical da nossa gente. Os rabequistas e os violeiros saberiam música, o solfejo seria a base para as suas interpretações da morna. Para os batuques e rodrigos de sotavento, grupos de cimbó e tamborim. * * * Meu tio recebeu sem entusiasmo a notícia de eu haver concorrido para professor de posto. — Para um rapaz como tu, na flor da idade, quási um suicídio. — Se não gostar, largo, não tenha dúvidas... — Não largas tal. Habituas-te a receber a folha no fim do mês e não pensas em mais nada. Assim hás-de passar anos e anos. Aturas maçadas de toda a casta, para receberes por mês uma ninharia... — Mas não hei-de ficar às sopas da minha gente, sem fazer nada... Meu tio arrebatadamente: — Larga tudo isto! Vai para a Guiné, para Angola, para o Brasil, para o diabo! Mas não fiques aqui... Só conseguirás cair no grogue… Esta vida é como clorofórmio. Ao cabo, todas as tuas aspirações se dissolvem. E o grogue espera-te... Olha para mim... Aguardente e mães-de-filhos. Não há mais nada que fazer, em que pensar, é claro que Joca tem de beber grogue e fazer filhos. Titio era assim tão lúcido, na falta de piedade com que se julgava a si mesmo. Disse-me novamente da pena que tinha de não haver feito como Papai. Partir para a América trabalhar nas fábricas de algodão. Nos bargers ou nos light-ships. Seria um animal de carga nas suas obras de trabalho. Black portuguese para todo o serviço. Mas tinha todo um mundo trepidante à sua volta. Livros, nas bibliotecas, para ler. Conferências para escutar. Imagens para absorver. Nada o impediria de matar a sua sede de saber e aperfeiçoar-se. O anónimo espectador da vida americana disciplinaria todo aquele mundo. E agora estava reduzido a viver entre montanhas. Hortas nuas, sem molha de chuva, e invadidas por gafanhotos. — Filhos de quarenta pais, vestidos de fraque... Perguntei-lhe por que não tentava emigrar. Ainda não estava velho. Quarenta e poucos anos ainda tinham largas reservas de vitalidade. Muitos haviam emigrado mais velhos. — Já estou cozinhado. E com este seminário de meninos atrás de mim... Nesse mesmo dia, boquinha da noite, titio apanhou uma bebedeira mestra. Manuel Cais e nhô Roberto Tomásia foram levá-lo à casa. Ainda os reteve um momento na cancela, a contar-lhes um incidente qualquer da história de Roma, com citações de Tito-Lívio, em Latim. As fuscas do meu tio davam-lhe para essas evocações eruditas. A sua memória tenaz resistia à vida-de-grogue. Depois caiu como morto sobre a cama, com as ceroulas sujas das necessidades. Mamãe, segurando a xícara de café forte, sustinha as lágrimas. Meu Deus, se eu teria de virar como tio Joca! Era seca, nua, devastadora como nas crises mais terríveis de que rezava a crónica da minha ilha. Desaparecidas, todas as esperanças, enganadas, as promessas de chuva. De todas as ribeiras a notícia que vinha era a mesma. Não se colheria um grão de milho, e dos feijoeiros nem falar, que a lestada de Novembro crestara tudo. No meu degredo do Morro Braz eu ia tomando o pulso à crise pela diminuição progressiva da frequência do posto. O meu decurião Emílio foi o primeiro a desertar. Vinha de muito longe, de um lugar perto da Jalunga. Os condiscípulos informaram-me que a família de Emílio batera, fugindo à seca, em direitura da Preguiça. Soube tempos depois que ele não pôde aguentar a jornada e ficou numa moita de purgueira no Canal de Carambola. Lá fui com os meus alunos plantar uma cruz no lugar onde Emílio morreu. Todas as manhãs era com a apreensão de chefe de patrulha de regresso do combate que eu fazia a chamada. E raro era o dia em que não faltava um dos meus soldados. — Manuel João! — Não está... — Cândido Almeida! — Não veio... — José Joaquim! — Está muito mal, professor... Constantemente passava pela minha porta gente que fugia dos povoados de Norte-a-Baixo, em direcção à Vila. Era um cortejo lamentável de homens, mulheres crianças. Os animais domésticos faziam também parte do êxodo para outras regiões mais habitadas. Nelas, ao menos, havia a consolança de um olhar de cristão no meio do drama lancinante. Os meninos, com as barrigas inchadas sobre as pernas magras. E vinha tudo, o pote de barro, a cama de finca-pé, as esteiras. A vaquinha magra e as cabras do pé-de-porta não abandonavam os donos em tal provação. Os cachorros de língua fora, farejando restos de osso para enganarem a fome. Muitas vezes, os animais miúdos eram transportados no ceirão dos burros ou em balaios, à cabeça das mulheres. Homens e bichos não conheciam distâncias naquela irmanação perante o destino comum. Como representante da autoridade administrativa, cargo que acumulava com as minhas funções de professor de posto-de-ensino, não tive comunicação nenhuma de desrespeito da propriedade do próximo. Era de uma rigidez de pedra a concepção da honra daqueles homens que batiam para a Estância, acossados pela fome. Ao longo dos caminhos, as canhotas ficavam pairando, à espera de momento oportuno para se abaterem sobre a carcaça dos animais que caíam, desistindo da viagem. Com a morte de Emílio, tratei de eleger um novo decurião. Apresentaram-se vários na classe. Tive de castigar um aluno do 2.° grau, das Casinhas, que esteve subornando os condiscípulos com talisca de mandioca, para o elegerem. Foi escolhido um mocinho dos Castelhanos. Respeitei dentro de mim a capacidade de sacrifício desse menino de doze anos, que tinha de andar dez quilómetros todos os dias, e levantar-se de madrugadinha, para ser o primeiro a chegar à escola, e às 8 horas, quando eu entrasse, ter tudo arrumado para o regular funcionamento da aula. O posto não aguentava o luxo de ter uma servente. Professor e alunos, tínhamos de nos devotar na tarefa comum, sem contarmos com estranhos à nossa pequena cidade. Conservo uma doce saudade dessa minha tão chegada camaradagem com os meus alunos. Tratavam-me como a um irmão mais velho. Mal sabiam eles que amargores de velho a minha mocidade encobria. Mesmo o mocinho das Casinhas não me ficou querendo mal. Passado o amuo, foi-me trazendo pedaços finos de talisca de mandioca para substituírem nos exercícios do quadro preto o giz que faltava na previsão orçamental das verbas do expediente escolar. Mas o meu novo decurião não aguentou por muito tempo. Um dia ele teve de prestar também o seu preito de obediência à seca, quando a família fugia do Norte. Era muito longe. Não pude ir, com os seus camaradas, fincar uma cruz no lugar onde Carrinho da Silva tombou. Destino aziago, o dos meus chefes de classe. De cada vez que ia ao Caleijão, era como se fosse uma terra estranha que eu visitava. A seca tinha modificado tudo. Desaparecidas, as reuniões na Água-do-Canal, mortas, as conversas alegres no desamparo do crepúsculo. Só nhô Roberto Tomásia não faltava nunca, mas tinha fugido, acossado por todos os ventos da desgraça, o riso largo que lhe descascava os dentes plantados em gengivas vermelhas como goiaba madura. E o crepúsculo se desdobrava num manto tenuíssimo que envolvia tudo, homens e coisas, no mesmo abraço sereno de paz. A natureza desconhecia os dramas que remordiam o coração da criatura. Lela Bento morto no caminho da Caldeira, quando ia à procura de batata conteira para enganar a fome dos meninos. Uma doida, que tinha um filho, deu do sangue do seu peito, em que o leite estancou, ao mocinho morto. Depois atirou-o do alto da Combota, sobre o empedrado da fonte, e ali ficou por noites com a sua cantiga aziaga, ninando o sono do filho. As hortas, vermelhas, sem vestígio de planta. Foi com uma melancolia de general vencido que visitei o meu pedacinho em frente da casa, que Papai me distribuíra, tamanhinho, para adquirir experiência agrícola à custa do meu braço. Só o mané-gatinho se obstinava a viver naquele deserto preparado pelas chuvas escassas dos anos anteriores. Nhô Chic’Ana esteve alguns dias doente. Mamãe-Velha, sentindo a sua falta, mandou-lhe caldo de tapioca. Eu nunca tinha visto aquilo. Era novo para mim esse espectáculo da vida que foge imperceptivelmente dos homens e das coisas. Os lunaristas explicavam a fatalidade cíclica da seca. De vinte em vinte anos era aquela falsia completa da chuva, desamparando as ilhas para outras paragens no meio do mar. Eu estava habituado à face serena da vida rotineira da minha ilha. Até agora, tudo me parecia impregnado de imobilidade. Veria até o fim da vida as mesmas caras, a mesma mediania, a mesma resignação perante o Destino que Deus governou lá do alto. A insuficiência de outros anos não me tinha preparado para aquela batalha cruel e total. Por muito tempo que eu vivesse, Mamãe-Velha havia de acompanhar Chiquinho com as suas descomposturas e a sua solicitude grulhenta. Os meses iam passando e com eles todas as esperanças da pobreza. Agora era a doença que minava as alimárias. Das nossas vinte cabeças de vaca nem uma se salvou. Bem Pitra cuidara delas no nosso tapado de pastagens do Campo, ainda forrado de soca velha. Uma a uma, todas foram caindo. Eram imagens da minha infância, ora familiares, ora heróicas, que fugiam. “Bismarck”, “Napoleão”, “Espertinho”, tudo nomes que eu havia posto aos bezerros novos, ao sabor das minhas admirações de menino. Mundo em que a vida real e a minha vaga divagação sentimental de mocinho crioulo se entrelaçaram de forma indissolúvel. Não sabia a quem devotar maior admiração, se ao filho da “Estrela”, nervoso de frémitos juvenis, se ao novilho da “Senegal”, manso e calculador, que não tinha pressa em se levantar do seu repouso de criatura calma, para acudir ao desafio dos vizinhos levianos. “Napoleão” contra “Bismarck”, eis aula prática em que eu aplicava a minha nascente compreensão da história moderna. Para cúmulo, apareceram os gafanhotos. Os restos de palha verde iam sendo devorados pelas suas mandíbulas implacáveis. E uma cor única dominava tudo, o cinzento. O sol peneirava uma claridade baça através da cortina encinzeirada da mormaça. Procurei aproveitar os meus ócios no Morro Braz para escrever o meu ensaio. Cheguei a redigir os primeiros períodos. Mas logo aquilo pareceu-me uma coisa tão estranha, tão fora de propósito, que pus de parte a caneta. Para quê, essas pretensões de história e sociologia numa terra que estava bradando por milho para a cachupa? A realidade imediata absorvia tudo. Organizou-se na Vila um serviço de alimentação aos famintos das ribeiras distantes. Na Irmandade um grande caldeirão cozinhava cachupa perto do pé de tamarindo. Tio Joca veio da Praia Branca prestar o seu concurso. Preocupava-o principalmente a sorte dos meninos e dos doentes, que precisavam de alimento mais adequado do que a cachupa bruta de água e sal. E não descansou enquanto não conseguiu organizar uma dieta de tapioca, que uma comissão de senhoras se encarregou de fazer chegar às casas dos necessitados. Titio subiu na minha consideração com esse seu dinamismo encharcado de piedade humana. Das ilhas chegavam notícias alarmantes. Por toda a parte, a seca estendera as suas garras insaciáveis. Em S. Tiago, a Praia enchera-se literalmente de gente fugida do interior. E por onde se andasse eram famintos dormindo ao relento, no Monte Tagarro, na Praça dos Governadores, na ponte da Alfândega. Andrèzinho mandou ao Ministro das Colónias, em nome do Grémio, um telegrama pedindo socorros urgentes. E lançou em S. Vicente a ideia do que ele chamou “imposto sobre o cocktail”. Cada qual pusesse em caixas que se colocariam pela cidade nos postos de luz eléctrica o valor do cocktail que tomaria, e de que era dever imperativo privar-se em tal conjuntura, para auxílio dos famintos das ilhas. Era bem de Andrèzinho esse test das possibilidades de civismo dos mindelenses. A minha escola no Morro Braz morreu de inanição. Os alunos foram desaparecendo um a um. O pão do espírito cedeu à necessidade mais imediata e absorvente da cachupa do corpo. Conheci uma época inteira de absoluta ociosidade no Caleijão. A minha vida era um navio desamparado, sem velas e sem norte, no meio da tormenta que batia a minha terra. Era para Andrèzinho e não para mim, pobre pena ao vento, introduzir um pouco de acção e de beleza na tragédia da minha gente. E para tio Joca também, que superava a sua vida-de-grogue numa actividade de assistência aos seus semelhantes. Eu era ser passivo que se abandona à influição do destino. Faltava-me a energia de amar e de viver de Nuninha, que chegou a propor-me fugirmos juntos para Dakar ou para o Brasil. E ela ia ficando uma imagem sempre presente no meu coração, mas cada vez mais distante da minha mão. Eu não tinha, afinal, o espírito de aventura do rapaz da ponta-de-praia, que tira passagem clandestina para o mundo a bordo de todos os vapores que tocam em S. Vicente. Houve um grande levante no S. João. Dos lados da Ribeira da Caixa vem grande vozearia. Destacam-se os gritos agudos das mulheres. De repente, rompe uma guisa alta. Acorre gente das bocanas das travessas, a saber quem morreu. A guisa desce a ladeira. Há desespero no choro. A gente de baixo começa também um resmungo de guisa. — O que é? Quem morreu? Desemboca de uma travessa uma mulher a chorar alto. Ela abana um lenço. Na guisa que desce da ladeira alguém chora constantemente: — Ah, meu irmãozinho! A mulher passa pelos que vieram dar fé e lança: — Oh Deus! E a sua fome... Falta é que está obrigando... Um cavalheiro de gravata deteve-a a inquirir: — E Lela que foi apanhar farinha em loja de gente, polícia pegou-o e agora está dando pranchada... Ouvem-se apitos. O povo chega ao largo. Vem no meio, aguentado por dois homens, um rapaz de rosto ensanguentado. A camisa rasgada deixa ver o peito, em que escorrem fios de sangue. O povo parou. Uma mulher arrancou pedras da paredinha do largo e dá ao seu homem: — Toma. Se és filho-macho mostra agora! O homem joga as pedras no chão. A mulher insiste: — Eu já disse, se é para morrer de fome, morrer de tiro... Levaram o rapaz ferido para a Farmácia. Mas o ajuntamento continua. Da Ladeira e da Estância de Baixo vem chegando mais gente. Há ameaças nos olhos desvairados das mulheres. — Esta terra precisa que lhe dêem um jeito... — Quando vi polícia pranchar Lela fez-me uma coisa no corpo de dar uma bala de pedra... Há mulher que parece ter enlouquecido. Ela subiu a um banco e lança pedradas à toa. Depois despiu o mandrião e ficou a bater no peito. Provoca os homens: — Eh Jack, o que é que tens na entre-pernas? Fedro Canja, onde meteste a tua fala grossa? Um polícia quere prender a mulher. Deita-lhe a mão no pulso, mas ela sacadeia e resiste. De repente o polícia curva-se e dobra os joelhos. A mulher deu-lhe uma pegada em mau lugar. Agora o povo é o mais forte. Empurram o polícia, que se retira com o corpo dobrado, a apitar. Chega um homem que diz que o rapaz ferido está em mau ponto e deita sangue pela boca. Rompe de novo a guisa. Muitos chegam a investir para descerem para a Passagem. Mas outros hesitam. Aparece Chico Zepa com o seu passo coxeante. Soube do que se passava, e vinha brigar. Quando o viram aproximar-se foi uma grita de todo o mundo: — Chico Zepa é que é filho-macho de verdade… Chico, mostra estes vacões que não foste criado a abóbora... Os homens ganharam mais coragem. Um velha subiu num banco e gritou: — Gente, vamos para baixo gritar fome pelas ruas! Vamos, nada nos pode acontecer porque o povo é um pássaro que não tem onde dar tiro... Quem sabe onde é a cabeça, o coração, a barriga do povo? Chico Zepa tomou a cabeça e deu governo ao levante. Desceram o S. João. À frente iam dois garotos com duas bandeiras negras. Eram blusas de mulheres presas com linha de barbante em dois paus de cana-de-carriço. Os garotos gritavam: “Fome!”. E de trás o povo respondia: — Fome! Misericórdia! Quando desembocaram no Cutelo apareceu o Administrador empunhando arma-de-fogo: — O que é que vocês querem? Chico Zepa adiantou-se: — Povo tem fome, Sr. Administrador! Os rapazes disseram a Chico que se era preciso pau eles tinham pau, se era preciso braço eles tinham os braços que Deus lhes deu. As mulheres, quando viram o Administrador com a arma, quiseram investir para ele. Muitas tinham os aventais cheios de pedra tirada do cascalho da ribeira. Uma rapariga nova avançou e disse a Chico, mesmo na barba-cara do Administrador: — Chico, mostra que és filho-macho, e eu dou-te a minha honra... Chico Zepa subiu na parede do Cutelo e gritou ao povo: — Gente, vamos governar a nossa vida, porque ouvidos de filho-de-parida não nos querem ouvir gritando fome! O povo investiu. As portas da loja que ficava em frente foram arrombadas. Espalharam no meio do chão um saco grande de milho. As mulheres foram pondo o milho na regaçada dos aventais, de mistura com as pedras. Mas os homens foram ficando atrás. Um velho levantou os braços, com as mãos abertas, e os dedos apertados uns contra os outros: — Vocês sirvam-me de testemunha que não tenho nem um grão de milho entre os dedos! Outro batia na boca e fazia cruzes, livrando do pecado de soberba: — Honra vale mais que barriga cheia! Um rapaz moço gritou-lhe: — Vida vivida vale mais que honra! Uma mulher protestava: — Tenho meninos em casa que estão chorando fome. Se é para morrer de fome, morrer de tiro, e a minha cara continua honrada... A pouco e pouco todos se foram retirando. Chico Zepa ficou lamentando: — Pobre é como filho de gafanhoto. Nasce com as asas verdes, mas depois vira cinzento, cor de nada... Pobreza é escarrador de todo o mundo... E ele foi para o Caleijão contar à mãe que o povo tinha sentido cãibras nas pernas. Nos seus olhos e no cansaço do corpo sem sono havia a tristeza do general que perdeu uma batalha. Pimpinha é que levou a notícia. Logo depois do almoço eu estava sentado na cadeira-de-balanço, na salinha, a ouvir Mamãe-Velha, que contava um caso qualquer sucedido no Morro Morial. Pimpinha chegou toda afrontada, bem apertada na sua blusa de vichi, e nem deu as boas-horas: nhô Chic’Ana tinha morrido. Mamãe-Velha iniciou logo um resmungo de guisa. Encomendou nhô Chic’Ana à devoção de S. Miguel Arcanjo, que lhe guiasse os passos à porta do Paraíso. Saí um instante para fora. Relanceei os olhos pelos arredores, até o alcance da vista. Hortas secas, cor cinzenta, vegetação rala da carestia. Voltei para a salinha. Mamãe-Velha continuava a rezar pelos passos que o Santo Filho de Deus andou na Rua da Amargura. Pimpinha, encostada à porta da entrada, lançava olhos curiosos pelos retratos da salinha. Mamãe-Velha mandou gente à casa do morto. Deus que trouxesse consolança aos que ficavam. Fez a Pimpinha o elogio de nhô Chic’Ana. Velho discreto, muito amigo dos familiares da nossa casa. Era raro passar ao pé da porta sem dar fala, a ver como estavam os amigos. — Com Chiquinho, então, era uma cegueira. Muito amigo de Chiquinho, nhô Chic’Ana. Também, tinha de quê, pois eles pareciam ter entulhado alguma riqueza de sociedade... Volta e meia lá estava eu na casinha do Campo, em conversa com o velho. E eram falas que não acabavam nunca. Nós dois muito camaradas, nhô Chic’Ana dentando o pito do cachimbo, e eu sentado num pilão, atento como cachorro à espera de comida do dono. Deixei Mamãe-Velha e as suas evocações e fui direito à casa do morto, Ia-me chegando aos ouvidos a guisa das mulheres. O velho tinha estado de cama. Andava ultimamente muito fraco, de cara chupada, olhos esgazeados. Girava, dava suas voltas, mas as pernas não podiam aguentar qualquer caminhada de coisa nenhuma. E então sentava-se nas paredes dos caminhos, a ganhar forças. Uma angústia profunda tomava conta de mim. Nhô Chic’Ana morreu de fome. Senti vontade de gritar, para que todos ouvissem. Nhô Chic’Ana morreu de fome. À direita, à esquerda, a vista era a mesma. As mesmas hortas, nuas no seu chão de barro e comidas pelos gafanhotos. Na casa do morto já havia muita gente. As mulheres entoavam uma guisa muito sentida, com contra-canto. A filha de nhô Chic’Ana passeava pelo quarto, com o corpo dobrado para diante, e um lenço na mão, a abanar, a abanar. Nhô Chic’Ana agora, depois de morto, era portador de mensagens para o além-túmulo. Davam-lhe recados para levar aos que tinham ido. Não se esquecesse de lhes falar da saudade que deixaram. Que a vida era sem gosto depois que eles partiram. Pedissem a Deus Nossenhor pela felicidade dos anjinhos que tinham ficado órfãos do calor dos papais e das mamães. Dirigiam palavras choradas à filha do morto. Nunca mais falaria com nhô Chic’Ana. Nhô Chic’Ana já não lhe pediria mais lume para acender o cachimbo. Nhô Chic’Ana já não lhe botaria a bênção. Ela já não tinha o seu papai para lhe botar a bênção. Adeus, nhô Chic’Ana. Que ela consolasse mamãe. Corresse a mão a mamãe, que ficava neste mundo, tão angustiada. Aproximei-me da cama. Nhanha Bonga recebeu-me com grande admiração de choro. Ah Chiquinho! Tinha morrido o meu grande amigo. Que iria Chiquinho fazer doravante na casinha do Campo? Nhô Chic’Ana não botaria mais aqueles exemplos que tanto me entretinham. Nhô Chic’Ana estava todo mirrado, seu corpo magro a perfurar de ossos a manta que o cobria. O meu velho amigo morreu de fome. Encostei-me à cama, a cabeça tomada nas mãos angustiadas. Os meus dias de infância povoados da presença de nhô Chic’Ana. Ainda o vi, de corpo mais válido, na labuta da lavoura. Nas tardes, eu vinha à casinha do Campo. Nhô Chic’Ana fazia-me hominhos de barro, que ela baptizava com nomes da história de Carlos Magno. Outras vezes, talhava-me navios de purgueira. E o meu regalo era correr os navios no tanque de António Jejê com os companheiros. Nhô Chic’Ana contava-me casos da sua vida de marinheiro, as terras que ele tinha conhecido. As suas palavras eram lentas, sentenciosas, pedia ao velho que me contasse histórias: — Nhô Chic’Ana, você conte um caso... — Não tem tempo... — Conte, nhô Chic’Ana! — Nhor não, contar histórias de dia faz pelar a capela dos olhos... Mas eu conhecia-lhe o fraco. Tirava da algibeira um bocado de erva para fumar, e logo nhô Chic’Ana estendia a mão. E começava. Antigamente tinha uma casa muito grande no fundo do mar. Lá dentro só morava uma mulher, que estava sempre sentada numa cadeira-de-balanço. Ao pé dela estava um barril, dentro do barril tinha uma bola de ferro, dentro da bola tinha uma boceta[3], dentro da boceta uma pomba, dentro da pomba um ovo, dentro do ovo um fio de cabelo. Neste fio de cabelo é que estava a força daquele-homem-pelo-sinal-da-Santa-Cruz… E agora ali estava, morto, nhô Chic’Ana. Morto de fome. O saimento de nhô Chic’Ana era no dia seguinte, às duas. Às duas nhô Chic’Ana sairia da casa para a sua morada de baixo-do-chão. Antes da caminhada para a Tabuga, tinha o acompanhamento de ir Vila, para a reza na porta da Igreja. Saí. Fui andando caminho a cima, em direcção à casa. Mal toquei na comida que Mamãe me deu. Nhô Chic’Ana morreu de fome. A seca tinha cosido um grande vestido cinzento para a terra trazer o luto de nhô Chic’Ana. Eu estava como que atordoado. O sol peneirava através das nuvens de calor uma claridade parada. Nas Casinhas, na Jalunga, na Junça, morria-se de fome. O enterro de nhô Chic’Ana. O velho ia a enterrar às duas. Às duas poriam nhô Chic’Ana no esquife da pobreza: quatro paus de piteira e uma manta velha. Nhô Chic’Ana iria para a terra envolvido numa manta velha. Os crioulos levá-lo-iam como num andor, com respeito. A saída a guisa aumentaria. (Adeus, nhô Chic’Ana, adeus, nhô Chic’Ana para a terra da saudade). O velho não seria encomendado com cantigas sacras, ele apenas seria posto na porta da Igreja, com rezas. Dondê cinco mil e quinhentos para a encomendação solene? A Combota estava cheia de gente à cata da água, que escasseava cada vez mais. Do alto do Alberto vinha um fio, magro como cação. Havia guerra declarada para uma qualquer encher a celha. Fui descendo rumo à casinha do campo. Ia sair o enterro de nhô Chic’Ana. Em breve seu corpo ia deixar a casa para nunca mais. Os homens aproximaram-se da cama. A velha estava abraçada ao corpo de nhô Chic’Ana. Consolaram-na. Nhô Chic’Ana ia para a Glória. Deus Nossenhor era amigo de nhô Chic’Ana, porque nhô Chic’Ana era bom. As exclamações de choro aumentaram. Um velho, gravemente, rezou a Remia-Mia, que livrasse nhô Chic’Ana do fogo dos infernões. Botaram nhô Chic’Ana no esquife de piteira. Nhanha Bonga ficou deitada na cama a chorar o velho. Fez as suas despedidas. Para quê, se ela em breve iria ter de nhô Chic’Ana? Agora ia nhô Chic’Ana para a terra da saudade. Companheiro de mais de cinquenta anos. Porque a deixava a ela, velha e fraca, nesta vida castigada? O acompanhamento saiu. Gente ia-se encorporando pelo caminho. Nhô Chic’Ana nunca esperou ter tanto povo a levá-lo à sua casa de debaixo-de-chão. Ainda lhe vi, antes do saimento, a cara mirrada, em que os dentes se mostravam descascados no seu sorriso resignado de pária, apesar do lenço que lhe atava o queixo. Parecia querer contar a nhô Chiquinho a sua última historia, antes de ir fumar cachimbo para o outro mundo. Atravessámos o Caleijão, descemos a Ladeira da Lapa, e apenas se ouvia de quando em quando um esboço de choro, abafado nos lenços grandes das mulheres. Tirante isso, só a trupida cadenciada dos passos descendo para a vila. Nhô Chic’Ana foi posto na porta da Igreja. Os sinos não tocaram sinal. O padre apareceu com o sacristão e rapidamente rezou umas rezas. O terreiro da igreja tinha-se calado, caladinho. Nem sequer os garotos andavam jogando a bola. O ponteiro do relógio da Sé estava quási sobre as quatro. Um raio de sol brincava no mostrador. Quási quatro, a reza de nhô Chic’Ana à porta da Igreja; O acompanhamento atravessou a ponte velha. A ponte fora feita para estabelecer comunicação entre as duas vertentes da Vila, nos dias de grande ribeira. Mas agora ela estava velha, a cair tábuas. Na estrada do Lombinho o acompanhamento alongou-se nos cotovelos do caminho, sobranceiro à Maiama. Tudo seco. Secas as bananeiras. Secos os plenos de cana. Só os coqueiros erguiam o corpo esguio, com o cocuruto à espreita do mar, a uivar na boca da ribeira. Mais para diante, enviuzando um pouco para a direita, eram as planícies famintas do Norte-a-Baixo. A fome era lá mais rapada, mais crã. Seguia o enterro de nhô Chic’Ana. Lá estava em baixo, alvejando de paredes caiadas, o cemitério da Tabuga. E o corpo de nhô Chic’Ana ia balançando docemente aos ombros dos crioulos. Era um crioulo que ia a enterrar. Os crioulos iam dar terra a um irmão. Amanhã outros irmãos lhes iriam dar cova. Ao menos, debaixo da terra sente-se a chuva a todo o momento que ela vier. Calê cinco mil e quinhentos! Melhor encomendação do que a friura da água e o barulho da chuva caindo não pode desejar o filho-das-ilhas. Nhô Chic’Ana deu entrada no cemitério. Já o coveiro e mais dois rapazes lhe tinham preparado a cama-de-chão. Fechei os olhos a nhô Chic’Ana, os seus olhos que já não veriam Chiquinho mais. Acomodaram o corpo no fundo da cova. Quando se semeia também se acomoda a semente para ela vir à flor mais desembaraçadamente. Os homens curvaram a cabeça e rezaram Padre-Nossos e Gloria-Patri pelo descanso eterno de nhô Chic’Ana. Depois as pás botaram terra. Em breve a cova ficou rés-vés do chão. O mar também era o meu caminho. Papai, com as notícias que lhe iam chegando, perguntou-me se eu queria ir para América. Tio Joca apoiou imediatamente. Mamãe lamentou o destino que me obrigava a largar a minha terra. Mas também, ela não queria que eu ficasse pasmando pelo Caleijão, como gente sem eira nem beira. Tio Joca convenceu-me: — Não hás-de querer acabar a tua vida entre estas rochas, vendendo açúcar e petróleo numa tasquinha... […]
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