19.3.12

Eduardo WHITE - «corpus» seleccionado pelos alunos





Excerto da obra:
A Janela para o Oriente,
de Eduardo White

“Nas Filipinas uma lava destila o açúcar e eu bebo, em Manila, uma mestiça que me seduz, vulcânica na sua orientalidade, desde a raiz que lhe vem dos igorots, a falar de amor em tagalo, até à lembrança de Fernando Magalhães curvado sobre Mindanao, mais obscuro ainda nel corazon de su glória, orbital na azul fugacidade dos mares porque em Quezon se incandesce o canhâmo que ali chegou anelante e líquido pelas portas do sexo, o fulgor da copra amendoada e concava, viscosa para sangrar o sabão que o há-de lavar. E tudo isto eu digo a caminho da fertilidade tropical de Terai, no Nepal, e do frio altíssimo dos Himalaias onde um bovino se ri auto-móvel pelo gelo, a pensar, quem sabe, nas tranças de tabaco que seria bem melhor transportar pelas ruas diurnas de Kat-mandu, ou de Biratuagar, ou Lalipur, ou em amarrar-se, mais longe, ao puro sizal da utopia de Corazon Aquino num comício eleitoral nos subúrbios de Devao, meu oriente de quem este chão foi a ponte com o Ocidente e que ainda a vejo e atravesso do quarto da escrita, tu que eu olho sem que ninguém saiba e oiço como o bantu idioma do meu povo no Suriname a roubar ao mar a terra com a força punjante de um negro a gritar em takl-takl todas as mães que deixou, todos os filhos que não amou, tu denso e vegetal no barbudo caçador de tigres da Malásla, esbelto e escuro na flecha adunca do seu nariz, nos longos e azevichados cabelos a voarem de paixão por uma branca a passear-se em Johor Baru, tu mãe do bumuputra Sandokan na solidão do seu sabre, costureira, por ironia, da alta moda de Paris e a passear-se, com loiras e paneleiros trajados de caqui, no dorso medieval de um elefante e a despir-se ao ritmo dos tambores taoístas e das mil e tais posições do Kamasutra, meu Oriente dos belos e impagáveis travestis em pleno Laos, a beber Coca-Cola da boca amarga dos marinheiros, a dar o cú mais feminino de Venciane, duro e redondo como não existe em Las Vegas, virginal ainda do pouco uso ou da idade recente no negócio, meu Oriente nos haréns de Bandar Seri Bangwar, na dança do ventre do próprio sultão a rir-se de tudo e a coçar os pés altivo e imperial no lustríssimo turbante, nas opalas gigantes dos dedos, ou ainda do velho obeso e cansado Vasco da Gama, em Molucas, português de fé como minha mãe, deixa que cheguem a esta janela, pelas tuas canoas com balancias e velas, os melões vermelhos da Malásia, a borracha de Sumatra, o amendoim da Birmânla, o cacau de Luzon nas Filipinas, deixa aqui fumar um cigarro enrolado a dedo em Java e uma dançarina de Bangkok para que durma.
Mas antes, deixo o Saigão numa jangada, com docinhos de arroz, a banana frita e um pouco de peixe salgado na cozedura para a viagem, deixo o Salgão com alguma tristeza e o meu mulato, lá, gonorreico a chorar num reclame da Cruz Vermelha, vou para Boston sem uma perna, pedrado da vida, perdi-a a matar em nome do velho branco de fraque e cartola e a ler Ginsberg fodido por lhe terem tirado tudo sem nunca ter recebido nada. Saigão venérico de Napalm nas canções de Lenon, a pôr bombas na casa real inglesa e a dizer-se maior que Cristo e a masturbar-se de óculos com o Japão em Yoko, meu Saigão inderrotável até nas papaeiras da Marilyn Monroe, vermelha de dormir com a América toda ou de cheirá-la por um tubo branco a redimir-se sozinha do velho sangue preto de Martin Luther King, Saigão da vergonha, terrorista, da malária a gingar no mosquítico mindinho comunista de Ho Chi Min, invisível, maquiavélica por Maquiavel não ter culpa disso, Maoísta até ver quando, Saigão das bananas a descascar o mundo e a vomitá-lo todo na Broadway, a dançar sapateado com o conformado Fred Astair, nas loiras adolescentes de Nova Iorque brilhantinosamente estéricas com a pilinha de ouro do Frank Sinatra ou na volumosa mandioca do Jimmy Hendrix a tocar com os dentes o hino nacional americano, Saigão doente e triste, mas de pé em Phnom Penh e nas rotas botas do cidadão Giap, oriental em tudo e místico e forte, vejo-te daqui e não sabes, com um barco pronto a meio do peito e as malas por arrumar na consciência.”







 PROSA POÉTICA

“Vou mostrar-vos de outra maneira toda a substância desta mania. Um pássaro bebe nu na minha boca e em vão vai querer saber que álcool o comove com tanta frescura. Primeiro pia, limpa as asas robusta ainda húmidas da saliva e depois canta e ferve e sua, e num minuto já todo o corpo lhe estrebucha. Chama por mim. São muito velozes e bruscas as suas tonturas e eu face a isso pergunto-vos por que terá vindo nu um pássaro a beber à minha boca? Que esplendor ou embriaguez ele procura? Que obscuros dons, que vocação, que loucura?
Vamos, entremos agora no mistério onde o poema nos vigia, rente ao murmúrio para que a alegria não retina e podem ver ao fundo, ali, um estábulo onde as palavras se abrigam, acolá, um bebedouro onde a memória bebe, os restos de feno, dois tipos que trabalham em pleno escuro e já visível a farma, a terra em uso. Estão aqui os instrumentos, os moldes da mania de que vos falei há bocado.
Voemos.
Voar não é senão essa ilusão,
Fazê-la possível. Tê-la vivendo.
Voar é estender as mãos
a esse desejo que nos dói
como um punhal insurgente.”

(p. 26)




Poemas da ciência de voar

Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro."
...
Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.


E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele. Estará o verso conosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos. Amainemos esse desejo de o prendermos.

Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar
(p.244)
O corpo e o chão em Eduardo White
«Lembro-te: alguém no amor precisa de estar nu para mostrar ao outro que está demasiado vestido.». Assim abre e fecha o pequeno, mas irascível novo livro de poesia do moçambicano Eduardo White. Com o título sonoro e desconcertante «Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva», o autor executa uma odisseia pelas pulsões primárias do corpo e do desejo: em rajadas de linguagem, em alucinações verbais despidas de qualquer pudor, penetra o corpo da mulher africana de cheiro forte, chão da África real e utópica. São ácidos estes limões, que se acoitam e desamparam nas dulcíssimas laranjas sanguinolentas; é, sobretudo, uma poética de extrema solidão tecida com um método dramático, repleta de raiva e desespero, ou não fosse o amor matéria incerta e fugidia, pleno de exaltação e de dúvidas, de sonho, ilusão e perda. É, realmente, de nudez que aqui se fala: a nudez das intrigas que o desejo tece contra si próprio; a nudez de todas as sensações e todos os frémitos; a nudez dos sonhos e das realidades; a nudez que nos faz sentir, incomodamente, demasiado vestidos. Nascido em Quelimane (Moçambique) a 21 de Novembro de 1963, Eduardo Costley White tem colaboração na imprensa lusófona e tem publicados, entre outros títulos, “Amar sobre o Índico” (1984), “País de Mim” (1990), “Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave” (1992), “Dormir com Deus e um Navio na Língua” (2001), “As Falas do Escorpião” (2002), “O Manual das Mãos” (2004). Já arrecadou vários prémios literários e foi considerado em 2001, em Moçambique, a Figura Literária do Ano. Com uma poética atada ao chão do seu país, configurada com densidade amorosa e pujante erotismo que dão conta da «humana meteorologia», White foi classificado por Mia Couto como um poeta que «vive com o coração», que sempre «escreveu para dar a ver.». Trata-se de um compromisso entre o amor e a escrita explicado assim por White: «faço amor contigo como escrevo e só escrevo em plena liberdade e ouvindo os rumores, os arfares, os gritos, os rumores que implicam profundamente essa palavra». Com efeito, se em White, «cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos», como diz Carmen Lucia Secco, em «Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva» apresenta-se o gesto vertiginoso do corpo do amante, em idas e vindas, que se agita, encontra e esgota no corpo da amada. E a palavra – que nos faz «voyeurs, escondidos nas páginas», como bem refere Reinaldo Ribeiro, no Prefácio – lá está a dizer as «causas profundas da sede», crua, terna, incómoda e, provavelmente para muitos, chocante. Atesta-se a impulsão do desejo, o beijo, «anel linguisticamente molhado, regado por dentro do macio apaladado das papilas, da dormência dos lábios», o beijo com o qual «pode o falo levantar-se, devagarmente arguto como um embrião a espreguiçar-se» e a «missão de suborno pelas ruas» do corpo da amada, que é também uma incursão pela Pátria; neste sentido, White cria um objecto verbal pleno de elasticidade que atende às tensões, angústias e cicatrizes de um povo, e que lhe serve de grito: Estou louco, mascarado no nu doido que sou aqui, lambendo-te, poro a poro, pêlo a pêlo, como um faminto indigente; Cheirar-te desde as vísceras, o cheiro forte da mulher que és quanto mais te entro, alongado, viscoso como um molusco, a apalpar-te metro a metro, tecido a tecido, e a chamar-te nomes que são feios mas que aqui levam o milagre de serem belos e acariciantes; Este país é tão parecido contigo, (…) E as badjicas, meu amor, as badjicas amarelecidas de tempero naquele pão fortíssimo para cimentar o vácuo do estômago, a fome que de nós se não afasta, se mantém viva, nefastamente teimosa no partilhar o já pouco que cobre as nossas mesas. Meu país suburbano e só urbanizável no amor. Para Reinaldo Ribeiro, este livro impressiona pela «crueza do desespero a que o poeta se abandona, e da sua impotência perante a imprevisibilidade do Amor.». Cartografando o amor, depois do êxtase no corpo amado há o frio da cicuta, a perda, que não é mais do que a perda primitiva, a que já estava no momento do êxtase: «Pergunto-me: que batalha foi esta tão esmagadora, arrasante de calafrios»; «Chega-me um certo cansaço, um Inverno aberto à insónia e ao crime. Amor, talvez não sintas esse cheiro a medo, este suor peganhento agarrado aos lençóis, este odor a enxofre.». No combate contra essa morte, está, pois, a escrita, câmara de ecos universais, projecto assumido claramente pelo autor: O amor, reparo, sangra como um aparo lento nas palavras, apagadas, tolhidas, incertas, ruídas, cercadas e assustadas. Custa-me tanto acreditar no que vejo, nestes escombros ácidos, nestes estilhaços tatuados nas paredes. O ar é pesado e envelhecido, é como um cais mórbido e paralisado, é como se babasse mapas rasgados, bússolas vomitadas, cadáveres enlouquecidos; (…) Então, por essa razão, te escrevo não com o fim de que morras mas que vivas eterna para mim, e escrevo-te em esperanto, mandarim, árabe, grego e em outras línguas que não sei desenhar pelo papiro delicado do teu corpo e faço-te tecido e sedas caras com os cabelos que sinto trespassarem-me a carne com maciez e alguidares de barro com argila perfumada e incensos de acácia e madressilvas e cidras que vou espremendo para a minha língua como um peregrino perdido que encontrou a fonte e a frescura da água e o repouso da sombra. Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva, Eduardo White; Editorial Campo das Letras, Porto, Junho 2008 © Teresa Sá Couto




Não faz mal.

Voar é uma dádiva da poesia.
Um verso arde na brancura aérea do papel,
toma balanço,
não resiste.

Solta-se-lhe
o animal alado.
Voa sobre as casas,
sobre as ruas,
sobre os homens que passam,
procura um pássaro
para acasalar.

Sílaba a sílaba
o verso voa.

E se o procurarmos? Que não se desespere, pois nunca o iremos encontrar. Algum sentimento o terá deixado pousar, partido com ele. Estará o verso connosco? Provavelmente apenas a parte que nos coube. Aquietemo-nos. Amainemo-nos esse desejo de o prendermos.

Não é justo um pássaro
onde ele não pode voar.

(p. 22)



Vou mostrar-vos de outra maneira toda a substância desta mania. Um pássaro bebe nu na minha boca e em vão vai querer saber que álcool o comove com tanta frescura. Primeiro pia, limpa as asas robusta ainda húmidas da saliva e depois canta e ferve e sua, e num minuto já todo o corpo lhe estrebucha. Chama por mim. São muito velozes e bruscas as suas tonturas e eu face a isso pergunto-vos por que terá vindo nu um pássaro a beber à minha boca? Que esplendor ou embriaguez ele procura? Que obscuros dons, que vocação, que loucura?
Vamos, entremos agora no mistério onde o poema nos vigia, rente ao murmúrio para que a alegria não retina e podem ver ao fundo, ali, um estábulo onde as palavras se abrigam, acolá, um bebedouro onde a memória bebe, os restos de feno, dois tipos que trabalham em pleno escuro e já visível a farma, a terra em uso. Estão aqui os instrumentos, os moldes da mania de que vos falei há bocado.
Voemos.
Voar não é senão essa ilusão,
fazê-la possível. Tê-la vivendo.
Voar é estender as mãos
a esse desejo que nos dói
como um punhal insurgente.

(p. 26)



Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.

(p. 28)



Por exemplo, o fogo.
O fogo estabelece o seu trabalho,
a sua centígrada destreza para arder.
E não sei se notaste
que na digital matriz das suas febres
o fogo opõe-se,
insubmisso,
a morrer.

Arde como se definitivo
e quando assim sucede tende a crescer,
busca aquela leveza das altas labaredas,
a implícita tontura das fagulhas.
O fogo arde como se quisesse fugir do chão,
das suas cavernas metalúrgicas,
ascende ao impulso dos foguetões,
à infância astral, à casa solar.

O fogo entristece, por vezes.
Chora inflamável na sua fatalidade terrestre
a estranha e lenhosa prisão
que o prende e embrutece.

Quer voar,
quer a sua ancestral condição de estrela
mas na corrida espacial com que o fogo queima,
na perpétua evasão,
a gula intestina-o
à sua pressa.

(p. 19)





*


POEMA DA PERGUNTAÇÃO

Não somos todos, os envergonhados, os verdadeiros culpados?
Não somos nós, os indignados, os verdadeiros carrascos?
O que antes e agora julgamos, não foi apenas uma pequena evidência? O que nós prendemos não foi a mão obscura de uma consciência? E mesmo o que matamos, não foi tão somente uma ínfima parte da verdade?
E procuramos grades? E procuramos muros altos e seguros? E procuramos homens obtusos para que os possamos vigiar? E procuramos armas para os tornarmos intransponíveis? De nada nos valerá, de nada nos adiantará. Não há ferro, nem betão, nem servilismo nenhum que nos possam salvar da luz da verdade.
Uma mentira não tem sempre sede de liberdade? Uma mentira não é a cela da verdade? E quantas vezes a pretendemos prender? E com quantas grades a desejamos ocultar? E com quantas mãos a ameaçamos estrangular?
Não vale a pena. Desistamos. Em nenhum maciço de betão podemos esconder o que a nossa consciência sabe. Em nenhuma anedota, em nenhum boato, em nenhuma suposição, em nenhuma imparcialidade e em nenhum juiz e em nenhum desmentido nos jornais e em nenhum país. Nem de nós, nem dos outros.



Eduardo White









“O que vocês não sabem e nem imaginam“

Vocês não sabem
Mas todas as manhãs me preparo
Para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
As poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
O vinagre para as mágoas
E o cansaço que usarei
Mais para o fim da tarde.

À hora do costume,
Estou no meu respeitoso emprego:
O de Secretário de Informação e de Relações Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
Felizes em seus ostentosos cargos,
Em suas mesas repletas de ofícios,
Os ares importantes dos chefes
Meticulosamente empacotados em seus fatos,
A lenta e indiferente preguiça do tempo.

Todas as manhãs tudo se repete.
O poeta Eduardo White se despede de mim
À porta de casa,
Agradece-me o esforço que é mantê-lo
Alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
Me lembra o pão que devo trazer,
Os rebuçados para prender o Sandro,
O sorriso luzidio e feliz para a Olga,
E alguma disposição da que me reste
Para os amigos que, mais logo,
Possam eventualmente aparecer.

Depois, ao fim da tarde,
Já com as obrigações cumpridas,
Rumo a casa.
À porta me esperam
A mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimentos de igual modo.
Um largo sorriso no rosto,
Um expresso cansaço nos olhos,
Para que de mim se apiedem
E se esmerem no respeito,
E aquele costumeiro morro de fome.

Então à mesa, religiosamente comemos os quatro
O jantar de três
(que o poeta inconsta
Na ficha do agregado).

Fingidamente satisfeito ensaio
Um largo bocejo
E do homem me dispo.
Chamo pela Olga para que o pendure,
Junto ao resto da roupa,
Com aquele jeito que só ela tem
De o encabidar sem o amarrotar.

O poeta, visto-o depois
E é com ele que amo
Escrevo versos
E faço filhos


Eduardo White

País de mim

42.
O peso da vida!
Gostava de senti-lo à tua maneira
e ouvi-la crescer dentro de mim,
em carne viva,

não queria somente
rasgar-te a ferida,
não queria apenas esta vocação paciente
do lavrador,
mas, também, a da terra
e que é a tua


Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido

Deixa nele crescer o sol
até tarde,
deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.



Eduardo White