12.12.11

O Testamento do sr. Napumoceno - resenha

“Mas neste momento penso que era sobretudo um homem que foi apanhado pelas coisas. Desembarcou descalço em São Vicente e não só comprou sapato como enriqueceu. Mas acho que ele mesmo nunca soube como nem por quê, embora seja verdade que era inteligente e tinha uma sorte danada. Mas penso que sempre receou voltar ao Napumoceno de São Nicolau.”
Germano Almeida
A metáfora não poderia ser mais adequada, um testamento cerrado, carta sigilada que, após a morte do protagonista testante, confidencia seus deslizes, dá nome à filha ilegítima e revela uma vida sem as máscaras impostas ou assumidas na trajetória do próspero homem de negócios.
Sr. Napumoceno da Silva Araújo, solteirão de hábitos ponderados e muitas manias, deixa como legado uma carta de trezentos e oitenta e sete laudas, escrita dez anos antes de sua morte. A vida do homem que enriqueceu com a venda de dez mil guarda-chuvas num país onde a seca impera e que continuou a aumentar seu patrimônio com o “sistema de compra-venda-lucro, nada de caixa, razão e outras leviandades afora as estritamente necessárias”, é descerrada pela filha Maria da Graça, fruto de suas investidas na mulher da limpeza, dona Chica, no tampão da secretária estilo Luís XV. Graça, instituída herdeira universal, busca nas palavras e nos pios legados deixados à ex-amante Adélia, ao primo Carlos e à empregada dona Eduarda, conhecer o pai póstumo, seus amores e seus ódios.
Numa narrativa abarcante, o escritor cabo-verdiano Germano Almeida nos apresenta os mundos paralelos, as hipocrisias sociais, a ingratidão e a luta desesperada do menino de pés descalços que vai para São Vicente fazer a vida, enriquece e, apesar de suas conquistas, passa a vida no limbo das classes sociais sem reconhecer a sua origem no pobre menino oriundo de São Nicolau ou ser aceito pela elite local nos clubes aristocráticos.
O sobrinho Carlos foi morar com o tio ainda menino. Decepcionou-o quando não mostrou aptidão pelos estudos na juventude, pois o Sr. Napumoceno considerava que somente os livros e a escola faziam os homens. Contudo, quando teve oportunidade, demonstrou um excelente tino comercial, ampliando e “desburocratizando” ainda mais os negócios do tio. Carlos recebeu a carta com o último pedido do morto: ser enterrado com a marcha fúnebre de Beethoven e o atendeu mesmo tendo sido afastado da condição de membro da família. Sr. Napumoceno deixou-lhe como legado apenas um pardieiro para sua velhice.
A relação ambígua marca a extensão da gratidão e do ódio. Carlos conhecia a história do tio, como ele também fora um menino descalço vindo de São Nicolau. Este fato era suficiente para o Sr. Napumoceno perceber a zombaria em seu olhar e tê-lo sempre sob escorreita vigilância.
Sr. Napumoceno gostava da pobreza envergonhada, de ser o protetor das várias pessoas que batiam em sua porta e lhes rendiam os frutos de uma eterna e humilde gratidão. O homem de negócios bem-sucedido precisava ser generoso para se redimir de ter enriquecido com a desgraça de milhares de cabo-verdianos.
Assim como a vida do homem revelada após a sua morte e com a tentativa dos órfãos de buscarem motivos para idolatrarem ou desmitificarem a história de sua ancestralidade, são as obras dos governos que só mostram seus verdadeiros legados depois de terminados e com cartas sibiladas que muitas vezes só serão compreendidas após muitas buscas e testemunhos.
Germano Almeida alinhava com ironia e sarcasmo uma narrativa ímpar que prende a atenção do leitor do primeiro ao último capítulo.


Helena Sut